Coroa de ossos: o limite entre transformação e a obsessão estética
Devemos sempre nos perguntar: estamos ajudando nossos pacientes a alcançar seus objetivos ou alimentando uma insatisfação interminável?
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Siga noGuilherme Ribeiro
Cirurgião plástico, formado em medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro
titular da Sociedade Brasileira
de Cirurgia Plástica
Mais vezes do que eu possa ter memorizado, escutava de algum amigo ou familiar que "parece que estamos vivendo um episódio de Black Mirror". Sempre pontuei que considerava um pouco de exagero. Apesar de concordar que poderíamos, em um futuro não tão distante, vivenciar realidades parecidas, elas ainda eram distópicas. Mas como o tempo verbal acima já indica, precisei revisitar minha opinião. O motivo? Uma manchete que poderia, facilmente, ser um episódio da série: "Mulher remove seis costelas e planeja transformar ossos em coroa".
Pronto! Aquilo que há poucos dias cravaria como "distópico" se tornou realidade diante dos meus olhos. Uma manchete que escancara a linha tênue entre o desejo por transformação e os limites da razoabilidade. O quanto as pessoas estão dispostas a se sacrificar em nome de uma beleza idealizada? A decisão de transformar costelas em uma coroa, um símbolo frequentemente associado ao triunfo em concursos de beleza, acrescenta uma camada de reflexão. É como se algo visceral fosse elevado à condição de troféu, reforçando os caminhos que percorremos para atender a padrões que prometem validação, mas frequentemente alimentam insatisfação.
A relação entre estética e aceitação, aqui ou na ficção, é um lembrete do impacto que essas pressões exercem sobre nossas vidas. Agora, eu te pergunto: mas até que ponto a cirurgia plástica deve atender a esses anseios? Atravessamos um campo minado de expectativas, avanços técnicos e dilemas éticos. Um dos exemplos mais debatidos é o remodelamento costal, frequentemente associado à chamada "retirada de costela". Essa técnica, que promete cinturas incrivelmente finas e gera fascínio em pacientes, me gera questionamentos, para os quais ainda não tenho respostas. O que virá depois? Qual será o limite? Onde vamos parar?
Muitos pacientes chegam ao consultório movidos pela promessa de resultados quase milagrosos, inspirados por imagens que circulam nas redes sociais. Mas a ideia de conquistar a cintura "ideal", que desafia os limites naturais do corpo, gera frustração tanto em quem se submete à cirurgia quanto em quem opta por não realizá-la. Padrões que fomentam comparações constantes, cruéis, irreais e que afetam diretamente a autoestima de milhões de pessoas.
Ainda que o remodelamento costal seja uma técnica viável e segura em mãos capacitadas, ele carrega um peso ético que não pode ser ignorado. Até onde estamos dispostos a ir para atender aos desejos de transformação? Muitas vezes, a responsabilidade do médico vai além de executar o possível — ela está em reconhecer quando dizer "não" é o verdadeiro ato de cuidado. Entender que nem tudo o que é desejado é necessário ou benéfico faz parte do exercício mais empático da medicina.
A cirurgia plástica é, sem dúvida, um meio importante de transformar vidas, de abrir portas para a recuperação da autoestima e a realização de sonhos, mas não deve ser vista como um fim em si mesma. Não podemos ignorar o impacto da cirurgia plástica na saúde mental. Por isso, devemos sempre nos perguntar: estamos ajudando nossos pacientes a alcançar seus objetivos ou alimentando uma insatisfação interminável?
A história da coroa feita de ossos das costelas reflete a obsessão social. Aos poucos, estamos deixando de lado os limites naturais do corpo e da mente, em nome de uma pseudoliberdade que, na verdade, nos aprisiona em padrões cada vez mais distantes da realidade. A busca por um ideal estético, alimentada pela constante insatisfação, nos coloca diante de um dilema: até onde podemos ir em nome da transformação sem perder de vista o essencial?