Organização usou mais de 60 empresas para devastar meio ambiente mineiro
Esquema tinha ainda projetos para lucar cerca de R$ 18 bilhões aos mesmos moldes, com corrupção de agentes públicos e davstação ambiental
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Siga noUma organização criminosa incrustada na mineração de Minas Gerais que corrompia funcionários públicos, fiscais e políticos para lucrar com extrações de minério de ferro em áreas tombadas ou protegidas é descrita em detalhes pela representação que permitiu a Operação Rejeito, desencadeada nesta quarta-feira (17/09) pela Polícia Federal (PF).
Ao todo cinco empresários do ramo de mineração, quatro agentes públicos e dois ex-agentes públicos foram presos até o momento, entre os 15 já detidos por 22 mandados de prisão preventiva com dois foragidos.
O esquema, com suas ligações e fachadas, foi denunciado pela reportagem do Estado de Minas em abril de 2025.
A representação criminal 6315374-44.2025.4.06.3800/MG mostra um esquema que lucrou cerca de R$ 1,5 bilhão desde 2019 e teria projetos com valor de R$ 18 bilhões.
Segundo a representação da PF, trata-se de um "esquema criminoso de extração irregular de minério e corrupção sistêmica" e que chegou a utilizar mais de 60 empresas.
A investigação, que se desdobrou na "Operação Rejeito", aprofunda apurações iniciadas com a "Operação Poeira Vermelha (2020)", que já havia revelado um esquema semelhante para a extração irregular de minério.
No centro da organização está o "núcleo de liderança", formado por Alan Cavalcante do Nascimento, Helder Adriano de Freitas e João Alberto Paixão Lages, indicados pela reportagem como donos e participantes de uma intricada rede de mais de 60 empresas que operava para corromper e lucrar com a mineração em áreas como a Serra do Curral e o vale do Rio das Velhas.
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Conforme a PF, eles são "sócios na empreitada delitiva desde 2020", gerenciando a organização criminosa e tomando as principais "decisões nos projetos do Grupo".
Como funcionava o esquema?
O modus operandi inicial envolveu a Mineração Gute Sicht, que obteve licença de forma irregular, utilizando uma "certidão de dispensa de licenciamento ambiental expedida em nome de outra empresa".
O objetivo era simular uma "falsa atividade de terraplanagem" para acobertar a extração, uma "ousadia" semelhante à de outras mineradoras do grupo que devastavam a Serra do Curral.
Essa audácia se estendeu ao deferimento de um pedido para a Gute Sicht por Guilherme Santana Lopes Gomes, que em pleno feriado de 25 de dezembro de 2020 "despachou como chefe de divisão" e depois "ratificou o ato, como Gerente Regional Substituto". Diálogos de Whatsapp confirmam o contato entre ele e João Alberto um dia após a decisão.
Com essa ajuda, a Mineração Gute Sicht obteve autorização para lavra em "tempo recorde" de aproximadamente "um ano e meio", enquanto processos similares levam de quatro a dez anos.
A análise ignorou "manifestações da AGU acerca da ilegalidade" e tramitou em um setor da Agência Nacional de Mineração (ANM) diverso do competente.
O minério extraído ilegalmente era então direcionado para a Fleurs Global Mineração Ltda, de propriedade de Alan Cavalcante. A Justiça Federal já havia "admitido" que a Gute Sicht e a Fleurs Global "pertencem a um mesmo grupo econômico", confirmando a conexão entre as operações fraudulentas do esquema.
Para "legitimar práticas delituosas e dissimular a origem ilícita dos bens, o grupo criou uma robusta e complexa rede de empresas sociedades anônimas". Essa "teia complexa", com o uso de "laranjas" e "testas de ferro", visava "pulverizar e mascarar as condutas criminosas, dificultando as investigações".
Essa estrutura era um "verdadeiro emaranhado contábil onde os reais controladores se escondem numa cadeia de pessoas jurídicas".
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Após a "Operação Poeira Vermelha", a Orcrim "passou a realizar lavagem de dinheiro em três ou quatro camadas", utilizando ao menos 42 empresas para ocultar os valores ilícitos.
No "núcleo de liderança", João Alberto Lages atuava como "Diretor de Relações Interinstitucionais", articulando com o poder público, enquanto Helder Adriano de Freitas era o "Diretor Operacional". Alan Cavalcante era o "responsável por toda a coordenação geral", incluindo a gestão dos pagamentos de propina.
A análise bancária revelou que Alan Cavalcante recebeu mais de R$ 23,1 milhões diretamente da Fleurs Global e outros R$ 87,1 milhões de forma indireta. Registros em grupos de Whatsapp, como "Minerar Aportes" e "Três Amigos Mineração", mostram o trio deliberando sobre os atos criminosos e os aportes financeiros.
O "núcleo de investidores" incluía Luis Felipe Ribeiro Monteiro de Barros e o pai dele, Luiz Alberto ("Zeca"), que aportaram R$ 6,9 milhões no esquema. Empresas como Kip Participações e Zfss Participações foram usadas para ocultar a origem e o destino dos valores, remetendo mais de R$ 40 milhões aos investidores.
O "núcleo administrativo-financeiro" era composto por figuras como Noemia dos Santos e Felipe Lombardi Martins. Eles eram responsáveis por constituir e administrar as empresas de fachada, além de movimentar os valores para a lavagem de capitais, garantindo o fluxo do dinheiro sujo dentro da organização.
Felipe Lombardi Martins ficou conhecido como o "homem da mala" do grupo, "coletando e levando os valores em espécie aos servidores públicos" sob o comando de João Alberto Lages. Ele também controlava os aportes e localizava "contas de laranjas" para depósitos e saques em espécie.
Jamis Prado Junior, outro integrante, "atuava diretamente na indicação e uso de empresas de fachada" para "saques em espécie". A esposa dele, Diana Morais Aleluia Prado, é proprietária da empresa Valefort, que recebeu R$ 19,3 milhões da Fleurs Global, valor que teria sido usado para pagar servidores públicos.
No "núcleo de atuação interinstitucional" estava Danilo Vieira Junior, ex-secretário de Meio Ambiente de Nova Lima. Ele recebeu "vantagem indevida de R$ 764 mil" enquanto estava no cargo e mais "R$ 5 milhões" após sair, para "articular com sucesso os interesses da Orcrim" junto à Semad.
O geógrafo Gilberto Henrique Horta de Carvalho é apontado como "grande articulador" em órgãos ambientais e na Assembleia Legislativa. Ele recebeu R$ 760 mil da Fleurs Global e "atuou politicamente para obstar o Projeto de Lei" que criaria o Parque Nacional da Serra do Curral, o que "mataria todos os planos de exploração" do grupo.
A Patrimônio Mineração, também ligada ao grupo, chegou a destruir uma caverna em Ouro Preto. A empresa, que teve João Alberto Paixão Lages como sócio fundador, demonstra o mesmo "histórico de desobediência" às autoridades, mantendo suas atividades mesmo após a área ter sido embargada pelos órgãos de fiscalização.
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No "Projeto Rancho do Boi", avaliado em R$ 1 bilhão, o servidor Leandro César Ferreira de Carvalho, da ANM, "aceitou um documento falsificado" para liberar a área, omitindo que o local era tombado. Ele é um dos principais "agentes cooptados" e chegava a submeter minutas de atos administrativos à aprovação prévia de João Alberto.
No "Projeto Aiga Mineração", de mais de R$ 200 milhões, diretores da ANM, incluindo Caio Mário Trivellato Seabra Filho, foram cooptados para "dar nova interpretação" à legislação e favorecer o grupo. Caio Seabra é suspeito de receber R$ 3 milhões em propina e de alterar uma resolução da agência para beneficiar a Orcrim.
Rodrigo Gonçalves Franco, presidente da Feam, é "um dos principais agentes cooptados", com "recebimento regular de propina". Ele "solicitou o pagamento de R$ 500 mil" e outros R$ 50 mil para Arthur Ferreira Rezende Delfim, diretor que assinou a licença da Fleurs Global "contrariando flagrantemente as exigências legais".
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Débora Maria Ramos do Nascimento França, ex-superintendente do Iphan/MG, também "foi cooptada pela Orcrim", recebendo R$ 565,9 mil. Ela articulou reuniões para obter aval ao licenciamento da Fleurs Global, mesmo sem os estudos exigidos. Fernando Benício de Oliveira Paula, do Copam, recebeu R$ 5 mil por seu voto favorável.
A "valoração econômica dos projetos" da organização criminosa revela um potencial que ultrapassa R$ 18 bilhões, com lucro líquido projetado de R$ 9,54 bilhões. A Fleurs Global Mineração, sozinha, movimentou R$ 4,3 bilhões entre 2019 e 2024, atuando como o núcleo financeiro de todo o esquema.
Diante da "alta lucratividade ilícita" e do evidente "risco de reiteração delitiva", a Polícia Federal solicitou diversas medidas cautelares à Justiça. Entre elas, a "prisão preventiva" dos líderes e dos agentes públicos corrompidos, o "afastamento da função pública" e a "busca e apreensão" de provas.
O pedido também incluiu o "sequestro e indisponibilidade de bens" e a "suspensão da atividade econômica" das empresas. O montante de bloqueio de valores foi limitado a "R$ 1,04 bilhão" para os alvos principais e "R$ 3 milhões" para um escritório de advocacia envolvido no esquema de propina.
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A "gravidade concreta das condutas" e o "absoluto desprezo pelas normas de proteção ambiental" justificam a "resposta estatal imediata e eficaz". A operação busca "desestruturar a organização criminosa" e "fazer cessar as práticas delitivas" que causam "danos irreversíveis".
Raio-X da Operação Rejeito
- O esquema: a Polícia Federal revelou uma organização criminosa (Orcrim) voltada para a extração ilegal de minério e "corrupção sistêmica" de agentes públicos em Minas Gerais
- Núcleo de liderança: composto por Alan Cavalcante do Nascimento, Helder Adriano de Freitas e João Alberto Paixão Lages, responsáveis pela gestão e decisões do grupo
- Modus operandi: utilização de licenças irregulares, criação de uma "robusta e complexa rede" de empresas de fachada para lavagem de dinheiro em até "quatro camadas" e cooptação de servidores para acelerar e aprovar projetos ilegais
- Agentes públicos envolvidos: a investigação apontou a participação e o recebimento de propina por diretores e servidores de alto escalão da FEAM, ANM, IPHAN e COPAM, além de ex-secretários municipais
- O "Homem da Mala": a Orcrim contava com um operador, Felipe Lombardi Martins, responsável por coletar e entregar valores em espécie para servidores públicos corrompidos
- Lobby político: o grupo atuou na Assembleia Legislativa para barrar a criação do Parque Nacional da Serra do Curral, que impediria seus planos de mineração na área
- Potencial econômico: os projetos da organização criminosa são avaliados em mais de R$ 18 bilhões, com um lucro líquido estimado em R$ 9,54 bilhões
- Medidas cautelares: a PF solicitou a prisão preventiva dos envolvidos, o afastamento dos servidores de suas funções, o sequestro de bens de até R$ 1,04 bilhão e a suspensão das atividades das empresas
Fonte: TRF6 e PF