CIGARROS ELETRÔNICOS

Perigo disfarçado traz à tona o fantasma do vício

O uso de vapes, com suas cores e cheiros atrativos, contribui para o Brasil registrar o primeiro aumento significativo de fumantes desde 2007, depois de décadas

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Com cheiro agradável, cores atrativas e aparentemente inofensivo, o cigarro eletrônico, também conhecido como pod ou vape, caiu no gosto do brasileiro, em especial entre os jovens. O dispositivo, que na prática causa mais danos do que os cigarros convencionais, contribuiu para que o Brasil registrasse o primeiro aumento importante no número de fumantes desde 2007.

“Esse aumento no uso do cigarro revela um retrocesso enorme. O número de fumantes hoje é superior ao de 10 anos atrás, mesmo com as políticas antitabagismo que são muito rigorosas aqui no Brasil. Acho que o vilão disso tudo é um tabagismo silencioso chamado cigarro eletrônico, que é atrativo principalmente ao público jovem”, analisa Michele Andreata, médica pneumologista e paliativista da Saúde no Lar.

Dados preliminares do Ministério da Saúde, divulgados no Dia Mundial Sem Tabaco, mostram um crescimento de 25% na soma de fumantes no Brasil de 2023 para 2024. O estudo indica a tendência de evolução do tabagismo nas capitais e no Distrito Federal, com aumento de 11,7% para 13,8% na população adulta. A alta estimada entre mulheres é de 36% e entre homens, de 18%. Sobre o cigarro eletrônico, o uso é mais comum entre jovens de 18 anos e 24 anos, com 6,1% declarando consumo.

“Pela primeira vez desde 2007, nós temos um ponto que está ascendente na curva. Isso nunca foi visto. Esse é um dado muito, muito preocupante. Então, é urgente que a gente volte a intervir mais duramente sobre as ações que a gente já sabe que dão certo, e especialmente se comunicando com os jovens”, declarou a diretora de Análise de Doenças Não Transmissíveis do ministério, Letícia de Oliveira Cardoso.

O advogado Marcos Vinicius Costa, de 25 anos, sempre criticou o hábito da mãe de fumar, mas acabou atraído pelas características do vape e hoje tenta abandonar o vício
O advogado Marcos Vinicius Costa, de 25 anos, sempre criticou o hábito da mãe de fumar, mas acabou atraído pelas características do vape e hoje tenta abandonar o vício Túlio Santos/EM/D.A Press


FISGADO RAPIDAMENTE


O advogado Marcos Vinicius Costa, de 25 anos, é filho de uma fumante e, dos três filhos, sempre foi o que mais a criticou e insistiu para que parasse de fumar. Porém, em 2022, durante uma viagem para a Argentina com amigos, ele experimentou o cigarro eletrônico e, em menos de seis meses, descobriu os malefícios do vício.

“Chega a ser até hipocrisia porque, dos meus irmãos, eu sempre fui o que mais peguei no pé dela. Mas, infelizmente, eu me coloquei agora no lugar dela: entendo que é um vício e que é muito difícil você parar”, relata.

Marcos conta que sempre teve horror ao cheiro do cigarro tradicional e, por isso, nunca tinha nem cogitado experimentar. O poder de escolher um cheiro agradável, junto com a sensação de bem-estar provocada pela nicotina, o seduziram. No início, acreditava que poderia parar de fumar a qualquer momento. Hoje, o hábito faz parte de sua rotina desde o momento em que acorda, chegando a consumir um dispositivo com cinco mil tragos a cada 10 dias.

Depois de uma vida permeada por atividades físicas como vôlei, musculação e caminhadas regulares, o jovem viu seu desempenho cardiorrespiratório diminuir. “Não tenho o mesmo pique que eu tinha antes.” O advogado já tentou duas vezes parar de fumar, e o máximo que conseguiu ficar longe do pod foram 14 dias. Agora, pretende buscar um programa de apoio para fumantes oferecido por seu plano de saúde para se livrar do vício.

Desde que tomou a decisão de ficar livre do cigarro, este ano, a professora de biologia Anna Clara Manini se sente mais feliz e com maior disposição
Desde que tomou a decisão de ficar livre do cigarro, este ano, a professora de biologia Anna Clara Manini se sente mais feliz e com maior disposição Marcos Vieira /EM/D.A Press


CAMPANHAS DE CONSCIENTIZAÇÃO


Depois de décadas de campanhas de conscientização dos malefícios do tabagismo, os cigarros tradicionais, como o branco ou o de palha, são reconhecidamente maléficos à saúde. O cheiro, que impregna o ambiente, assim como as roupas e o hálito dos fumantes, é facilmente identificável. Esses aspectos levaram à diminuição do consumo de cigarro, chegando a ser malvisto.

Já o cigarro eletrônico produz um vapor que pode ter diversos cheiros, como morango ou menta, e são agradáveis. O aspecto colorido também contribui para a imagem de “inofensivo”. Entretanto, a pneumologista Michele explica que, sob nenhum aspecto, o vape pode ser considerado menos prejudicial que o cigarro comum.

“Ele não tem o estigma que o cigarro comum tem, porque ele não traz aquele cheiro característico da queima de cigarro. Pelo contrário, ele tem um cheiro e um aspecto visual que são atrativos. Mas esse tipo de cigarro, em termos de carga de nicotina, pode ter o equivalente a mais de 15 maços de cigarro em um único dispositivo”, explica a médica.

Além da nicotina, o vape também contém outras substâncias nocivas ao sistema respiratório e até cancerígenas, como o formaldeído e o óxido de iodo, resultado da queima do propilenoglicol. Entre as principais consequências da absorção dessas substâncias estão o câncer de boca, crises respiratórias, bronquite e bronquiolite. A extensão dos danos do uso do vape ainda não é totalmente conhecida.

“As doenças cardiovasculares, infarto e AVC, a gente ainda não tá vendo porque o público que utiliza o cigarro eletrônico é jovem e tem pouco tempo que esse cigarro está no mercado, mas acredito que isso vai acontecer em muito pouco tempo”, opina Michele.

Em agosto de 2024, cerca de 80 entidades médicas, entre elas a Associação Médica Brasileira (AMB) e a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) divulgaram uma nota destacando o surgimento de nova doença chamada de Evali (sigla em inglês para lesão pulmonar associada ao uso de vapes e pods).

De acordo com o governo federal, o impacto total do tabagismo no Sistema Único de Saúde (SUS) é de R$ 153 bilhões por ano. Somente no Brasil, mais de 174 mil pessoas morrem a cada ano por doenças causadas pelo tabaco, sendo 55 mil por câncer.


SUSTO E LUTA

Paula Gomes, de 40, começou a fumar aos 22 anos quando estava na faculdade. Ela relata que os amigos fumavam, provocando nela a curiosidade de experimentar. Na época, usava cigarro branco apenas quando saía para bares ou se reunia com os colegas. Com o tempo, passou a fumar cigarro de palha regularmente. Apesar disso, levava hábitos de vida saudáveis, com alimentação balanceada e atividade física diária. Durante a pandemia de COVID-19, Paula morava com os pais e era a única da casa que saía para fazer compras. Em 2022, decidiu parar de fumar.

“Eu me assustei muito com a história da COVID, de muita gente não conseguir respirar. E o meu pai estava fazendo um tratamento de câncer. A respiração dele estava muito difícil no final da vida, e ele não era um fumante. Aí você começa a pensar ‘se ele fumasse seria mil vezes pior’”, relembra.

Paula conta que, depois que parou de fumar, se sente menos cansada e tem uma qualidade de vida melhor. “Quando somos jovens, a gente acha que é invencível, não pensa nas consequências. Se todo mundo soubesse o tanto de coisa que acontece de horrível por conta do cigarro, além do pulmão, ninguém fumava”.

Este ano, a professora de biologia Anna Clara Manini, de 30, também decidiu parar de fumar. Ela iniciou o vício com cigarro de palha, em 2018, em uma roda de amigos na faculdade. E o que começou com um maço a cada dois meses, virou dois maços por mês.

“No finalzinho, eu estava fumando muito, cheguei num ponto que eu acordava de manhã e a primeira coisa que eu fazia era acender um cigarro. Quando ia dormir, a última coisa que eu fazia era acender um cigarro também. Isso me fez parar para pensar: ‘Pera aí, tá errado’.”

Ela conta que o tabagismo piorou sua saúde respiratória e a distanciou de seus amigos, uma vez que quando saía com eles, se afastava constantemente da roda de conversa para fumar. Como é muito ansiosa, o cigarro virou uma muleta emocional.

A estratégia de Anna é o uso de um aplicativo, chamado QuickNow, que monitora aspectos como: quantos dias sem fumar, quantos cigarros não foram fumados e o dinheiro economizado. “Virou uma competição pessoal para lidar com essa vontade da nicotina, né? Está sendo bem bacana poder acompanhar esse processo. Minha saúde está melhor e estou muito mais disposta”, garante.


PROIBIDO, MAS NEM TANTO


Diferentemente dos cigarros tradicionais, desde 2009 uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proíbe a fabricação, importação, comercialização, distribuição, armazenamento, transporte e a propaganda de cigarros eletrônicos. Entretanto, o produto é de fácil acesso.

Em uma busca no Google feita pela reportagem, por exemplo, foi possível encontrar o anúncio de um cigarro eletrônico com 15 mil tragos e 5% de nicotina por R$ 139,00. O vape também é achado em tabacarias e nas portas de casas de show ou bares, oferecido por ambulantes.

Apesar da decisão da Anvisa, ainda não há uma lei que ampare a resolução de 2009. O projeto de Lei 2158/24, da deputada Flávia Morais (PDT-GO), tramita na Câmara dos Deputados e propõe alterar o Código Penal para punir os infratores com detenção de 1 a 3 anos e multa. O texto também proíbe o consumo dos dispositivos em ambientes de uso coletivo, público ou privado, mesmo os parcialmente abertos. Em dezembro do ano passado, a proposta foi aprovada pela Comissão de Indústria, Comércio e Serviços da Câmara dos Deputados.


TRATAMENTO GRATUITO

Para combater o tabagismo no Brasil, o Ministério da Saúde oferece tratamento gratuito em Unidades Básicas de Saúde (UBS), com apoio multiprofissional, ações educativas e oferta de medicamentos como adesivos de nicotina, goma de mascar e bupropiona.

“O Brasil é referência internacional no controle do tabaco, com políticas reconhecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como ambientes livres de fumaça, proibição da propaganda de cigarros e campanhas permanentes de conscientização, coordenadas pelo Programa Nacional de Controle do Tabagismo”, informa o ministério.

Para realizar o tratamento é necessário que o interessado procure a Secretaria Municipal de Saúde da sua cidade para ser informado sobre as unidades de saúde do SUS que estão ofertando o acompanhamento e realizar o cadastro.

Apoio em BH

Na capital mineira, a prefeitura oferece o Programa Municipal de Controle do Tabagismo com abordagens realizadas por profissionais nos centros de saúde e por equipes que atuam através do Núcleo Ampliado de Saúde da Família, além das academias da cidade. O projeto conta com palestras motivacionais, avaliações médicas e encontros periódicos em grupos de 10 a 15 pessoas.

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