HISTÓRIA DE VIDA

114 anos e muito ainda a viver

A idade não é limite para a centenária mineira Vó Raymunda, que, com invejável lucidez, recorda momentos felizes da sua longa jornada

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O mundo era outro quando Raymunda Luzia da Conceição nasceu no interior de Minas Gerais, em 1 de agosto de 1911. No cenário de um Brasil eminentemente rural e com alto índice de analfabetismo, episódios que mudaram o curso da história nacional eram recentes: pouco mais de 23 anos da abolição da escravatura (1888) e menos de 22 da Proclamação da República (1889). A jovem capital dos mineiros, por sua vez, ainda não completara 14, embora, na Europa, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) estivesse perto de começar.

Hoje, aos 114 anos, residente no Bairro Guarani, na Região Norte de Belo Horizonte, Vó Raymunda, como muitos a tratam pelos laços de sangue ou puro afeto, sabe que o caminho para a humanidade está na paz: “Com sossego, família, amizade, pessoas unidas”. No sorriso confiante e força nas palavras, traça planos para o futuro: morar num sítio, criar porcos, galinhas e uma cabra. “Quero muito”, diz a centenária ao lado da filha Maria Augusta da Silva, de 89, e da neta Isabel Volúsia de Freitas. A enorme família reúne netos, bisnetos e mais de 10 tataranetos

Na casa no Bairro Guarani, alamandas tingem de amarelo a grade sobre o muro. “As pessoas passam pela rua e sempre pedem muda da planta”, conta Isabel. Ligada na conversa, a avó revela seu gosto pelas flores, com uma aviso: “Mas tem que cuidar, viu?”. O zelo pela vida, pelos familiares e pela natureza são constantes, conforme Maria Augusta e Isabel, na vida da senhora natural de Carangola, na Zona da Mata mineira, que veio morar em BH na década de 1940.

Uma das pessoas mais longevas de Minas, Raymunda Luzia da Conceição integra um seleto de grupo de brasileiros centenários. Segundo o Censo do IBGE, são 37.814 acima dos 100 anos, dos quais 27.244 mulheres e 10.570 homens. Em Minas, há 4.104, dos quais 2.995 mulheres e 1.109 homens, enquanto em BH, 652, sendo 525 mulheres e 127 homens.

Devota de nossa senhora aparecida
Devota de nossa senhora aparecida GLADYSTON RODRIGUES/EM/D.A PRESS

MUITAS “PRIMAVERAS” NA PALMA DA MÃO E DO TEMPO

A próxima estação chega no próximo 22, mas, cheia de vida, dona Raymunda já se antecipou à temporada das flores, sua velha conhecida, e celebrou, em 1 de agosto, como está na carteira de identidade, 114 “primaveras”, palavra cheia de significados para recomeço de vida. Lúcida, aconselha a juventude: “Na vida, é importante trabalhar, fazer amizades, ser humilde e não ser maldoso...ter bom coração. Obediência também é muito importante”.

Sábias palavras. Conversar com a mineira de 114 anos é como abrir um livro de história real, dessas páginas que não passam pelo crivo dos revisores. Apertar sua mão, de toque firme, vem com a delicadeza de um abraço no tempo em estado absoluto, jamais etéreo. Já as palavras carregam a força ancestral, formando frases que parecem ecoar por toda a eternidade. Sem dúvida, Raymunda representa o ser humano que passou seus pedaços, provou do gosto e do amargo, venceu barreiras e mergulhou de cabeça na labuta para sobreviver e buscar melhores dias para os filhos. De onde vem a força? “Do trabalho”, dá a resposta certeira, como se o mundo estivesse na palma da mão.

Casada em 1929 com Antônio Augusto da Silva (já falecido), Raymunda chegou a Belo Horizonte na década de 1940, mãe de nove filhos. O trabalho sempre norteou seus dias. Lá em Carangola, aprendeu a clarear roupa “com folha de mamão”, arear (limpar e polir) panelas de ferro, cozinhar com banha de porco e gordura de coco, tirar água de cisterna. “Foi uma vida de sacrifício. O aprendizado fez com que minha mãe nunca parasse. Trabalhou duro, serviço braçal mesmo. Passava na rua carregando vários ternos masculinos no cabide, para entrega, e o pessoal que estava no bonde ficava impressionado. As conquistas vieram do esforço”, diz Maria Augusta.

Devota de nossa senhora aparecida, vó raymunda rezou pela libertação de wellington,  irmão da dupla zezé di camargo e luciano, sequestrado em 1998. Na foto guardada pela família, ela entrega a luciano a toalha de mesa que ajudou a tecer
Devota de nossa senhora aparecida, vó raymunda rezou pela libertação de wellington, irmão da dupla zezé di camargo e luciano, sequestrado em 1998. Na foto guardada pela família, ela entrega a luciano a toalha de mesa que ajudou a tecer REPRODUÇÃO/ÁLBUM DE FAMÍLIA


SAÚDE EM DIA PARA ALEGRIA DA FAMÍLIA

Em BH, dona Raymunda trabalhou em tinturaria, “perto de um trecho da Rua Pouso Alegre, que era desvio de bonde”, conforme ressalta Maria Augusta, fez reforma de chapéus trabalho em casas como lavadeira e passadeira – “lavando e engomando as roupas no tempo dos ferros de passar, pesando cinco quilos, em brasa. Muitas vezes, para garantir o sustento, trabalhou também em residências no Rio de Janeiro e São Paulo”, acrescenta a filha. Analfabeta, a mineira de Carangola sempre soube se deslocar na cidade e de um estado para outro, conhece os números. Votou pela primeira vez quando chegaram às seções eleitorais, em Minas (1996), as urnas eletrônicas, mas no último pleito não compareceu.

Isabel fala da energia positiva que a avó emana. “Ela atrai as pessoas para perto dela. Fez muitos amigos ao longo de décadas. Então, tem sempre alguém perguntando por ela ou passando para vê-la.” Nos porta-retratos da sala da casa, sobre a cristaleira, e no arquivo do celular da neta, há registro de comemoração de aniversários e de homenagens, como a recebida na Câmara Municipal de BH, há dois anos.
“A saúde da minha avó é boa, passou pela pandemia sem contrair COVID-19. Nunca fez uma cirurgia, teve os nove filhos de parto normal, a mãe dela era parteira”, conta Isabel. Para ela, a longevidade vem da boa genética, contribuindo para isso nunca ter fumado ou bebido ou gostar de noitadas. No prato, aprecia arroz, feijão, angu, couve e quiabo.

SANTA DE DEVOÇÃO E AMIZADE DÃO FORÇA

Num canto da casa do Bairro Guarani, há um oratório com os santos de devoção da centenária, cujo deslocamento pela casa ocorre com o andador, sob atenção constante da filha e da neta. Tão logo Maria Augusta busca a imagem de Nossa Senhora Aparecida, Raymunda a toma nas mãos com carinho. Esse momento emocionante da fé faz Maria Augusta se lembrar de uma passagem envolvendo uma promessa para o término do sequestro de Wellington Camargo, irmão dos cantores Zezé Di Camargo e Luciano.
Em 16 de dezembro de 1998, Wellington Camargo foi sequestrado e passou 96 dias em cativeiro.

Comovida com a situação, Raymunda começou a tecer uma barra de crochê com a promessa de que só terminaria quando tudo se resolvesse. E assim foi até 21 de março de 1999, dia em que a vítima foi deixada em local de Goiás, entre Goiânia e Guapó. Concluída a barra de crochê, veio uma tarefa para Maria Augusta, que a pregou numa toalha de mesa, de linho.

Num show da dupla sertaneja em BH, Raymunda entregou o trabalho nas mãos de Luciano – uma foto guardada pela família registra o encontro. “Hoje, minha mãe já não faz esses trabalhos artesanais, gosta mais de apreciar. Mas já enviou até colchas de retalho para Aparecida (SP), pois é devota da padroeira do Brasil”, diz Maria Augusta, lembrando que o sobrinho-neto, padre Renato de Souza, mora na Itália e sempre que vem ao Brasil vai visitá-la.

Na despedida, a equipe do EM abraça dona Raymunda e lhe deseja muitos anos de vida. Ela responde, com alegria: “Se Deus quiser...quero criar os porquinhos”.


O MUNDO E DONA RAYMUNDA


1911 – Em 1º de agosto, Raymunda Luzia da Conceição nasce em Carangola, na Zona da Mata de Minas Gerais


1911 – Em Belo Horizonte, são criadas as faculdades de Medicina e de Engenharia, mais tarde integradas à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)


Em 1929, Raymunda se casa com Antônio Augusto da Silva. O casal tem nove filhos


• Em 1929, o mundo está em polvorosa, com a “quebra” da Bolsa de Nova York. Veio daí a “Grande Depressão”, com efeitos globais, a exemplo de desemprego e colapso econômico


Década de 1940 – A família deixa o interior e vem morar na capital mineira


De 1939 a 1945, ocorre a Segunda Guerra Mundial, opondo as forças aliadas, incluindo o Brasil, e o países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão)


• Em 1951, nasce o primeiro neto de Raymunda. É a terceira geração, a partir dela, em Belo Horizonte


• Em 1996, com a chegada das urnas eletrônicas a Minas, Raymunda, que é analfabeta, vota pela primeira vez


Em 1º de agosto de 2011, cercada de familiares, comemora 100 anos


Em 2023, recebe homenagem na Câmara Municipal de Belo Horizonte

GLADYSTON RODRIGUES/EM/D.A PRESS

“Foi uma vida de sacrifício. Trabalhou duro, serviço braçal mesmo. Passava na rua carregando vários ternos masculinos no cabide, para entrega, e o pessoal que estava no bonde ficava impressionado. As conquistas vieram do esforço”


Maria Augusta da Silva, Filha de Vó Raymunda


“Ela atrai as pessoas para perto dela. Fez muitos amigos ao longo de décadas. Então, tem sempre alguém perguntando por ela ou passando para vê-la”


Isabel Volúsia de Freitas, Neta de Vó Raymunda

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