Consciência antirracismo

Dispara o número de ações por discriminação racial em BH e Minas

Processos vão de nove para 99 entre 2020 e 2024 na capital e de 59 para 364 no estado. Dados refletem maior facilidade de apresentar provas

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No Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial, celebrado nesta quinta-feira (3/7), dados sobre registros policiais e processos movidos na Justiça indicam que ainda há muito o que fazer quando se trata do assunto. Os casos de injúria racial aumentaram 13,7% em Minas Gerais nos quatro primeiros meses deste ano em relação a igual período de 2024, apontam dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp). A tendência também foi observada nas denúncias de racismo, que cresceram 7,94% na mesma comparação. O número de processos também está em alta tanto no estado quanto na capital mineira, onde a variação entre o número de 2020 e o do ano passado é de 1.000%.


A estudante de educação física Suemes de Alvarenga, de 31 anos, conta que sentiu na pele a dor do preconceito. Ela denuncia ter sido vítima de racismo por parte dos colegas da Universidade Federal de Viçosa (UFV) em dezembro de 2023. “Foi como se a minha vida não valesse nada. É como se nós, pessoas pretas, não tivéssemos o direito de ir e vir. Mas eu tenho muito senso de justiça e acredito que o que aconteceu comigo tem que ser apurado e julgado”, afirma.


Suemes não foi a única a não se calar diante do crime, e os novos processos só crescem na Justiça mineira. Nos últimos cinco anos, o aumento foi de 516% segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), saltando de 59 registros em 2020, para 364 em 2024. Na mesma comparação, os números saíram de 9 para 99 em Belo Horizonte, o que significa uma alta de 1.000%.


Para especialistas e ativistas, a facilidade de registrar o momento do crime (com câmeras, áudios etc) e de ter provas contra os autores, além da maior consciência da vítima, explicam o crescimento. Esses, inclusive, foram os fatores que levaram Suemes a ir adiante e processar um colega de turma que, em um grupo de WhatsApp, a chamou de “desgraçada, neguinha...”.


Segundo o relato da jovem ao Estado de Minas, tudo começou depois que ela e o suspeito discordaram, no aplicativo de mensagens, sobre uma disciplina ser pré-requisito de outra no curso. Ele então teria proferido o xingamento em uma conversa entre colegas. Dois dias depois, um amigo mostrou a ela um print da troca de mensagens.

516%
crescimento dos processos envolvendo racismo no estado na comparação entre 2020 e 2024


Quando registrou o boletim de ocorrência, a estudante ainda sofreu ameaças. Segundo ela, o suspeito teria postado a seguinte mensagem: “Arrombada chamou a polícia lá para casa, dando a maior dor de cabeça; agora fica amolando o grupo; eu vou tacar bosta de cachorro pela janela dela.”


Posteriormente, Suemes recorreu ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) em Juatuba, onde conseguiu prestar o primeiro depoimento. Em junho de 2024, a delegacia instaurou um inquérito. O processo ainda segue a passos lentos: “O pouco que eu consegui, foi porque insisti muito, fiquei correndo atrás”, afirma a jovem.


Cenário em Minas

Segundo relatório do Observatório de Segurança Pública de Minas Gerais, que reúne ocorrências registradas pela Polícia Militar, Polícia Civil, Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais e pela Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), Minas Gerais registrou 68 boletins de ocorrência sobre atos de racismo entre janeiro e abril de 2025, um aumento de 7,94% em relação ao mesmo período do ano passado, quando foram 63. Em todo o ano de 2024, foram 213 casos relatados ao poder público, o que representou um recuo de -44,09% em relação à 2023, com 381 registros.


Já em relação ao crime de injúria racial, o cenário no estado piora a cada ano. O ano passado acumulou 1.841 registros do crime, um aumento de 153,23% em relação a 2023, com 727. Até abril de 2025, foram 644 registros, o que representa 13,78% a mais que no mesmo período de 2024, quando foram 566. Em Belo Horizonte a situação se apresenta um pouco melhor. As denúncias do crime de racismo caíram pelo segundo ano consecutivo. Ao analisar os quatro primeiros meses, o número de ocorrências diminuiu de 23 em 2023 para 16 no ano seguinte (-30,4%) e para 14 este ano (-12,5%). A tendência de queda também foi registrada no total anual, uma vez que passou de 81 em 2023, para 51 em 2024 (-37%). Além disso, a capital registrou a primeira queda em cinco anos no crime de injúria racial, saindo de 124 nos primeiros quatro meses de 2024, para 104 este ano, ou seja, -16,13%.

Processos em alta

Marcelo Colen, diretor de Diversidade e Inclusão da OAB-MG, diz que uma das causas do crescimento no número de processos é a tomada de consciência da sociedade, que cada vez mais denuncia e cobra respostas do poder público. Ele ainda reforça que é importante a vítima fazer a denúncia para gerar dados capazes de embasar políticas públicas.


“Este é o caminho que temos que seguir para que esse criminoso – porque o racista é um criminoso e isso tem que ser dito nessas palavras – seja responsabilizado da mesma forma que nós queremos a responsabilização de homicidas, ladrões, traficantes e corruptos. E o caminho para isso é exatamente o registro do boletim de ocorrência, o comparecimento nos atos da investigação e nos atos do processo”, afirma o advogado.

O miliante do movimento negro e diretor estadual da União de Negros e Negras pela Igualdade (Unegro), Alexandre Braga, concorda que a população negra tem mais consciência sobre as pautas raciais, mas acredita também que a sociedade está mais preconceituosa. Além disso, ele avalia que a internet se tornou um lugar de registro e compartilhamento de grande alcance, assim como um meio para encontrar uma rede de apoio.


“O celular é um instrumento político. Hoje você grava um vídeo, rapidamente joga nas redes sociais e recebe uma rede de solidariedade. Então acredito que é uma espiral: aumentam os casos de racismo, porque a sociedade está mais racista, mas em consequência você tem novos instrumentos que ajudam a denunciar e a proteger os corpos negros, dentro do possível, desses crimes de racismo”, analisa Braga.


Apesar do aumento do número de processos, ambos acreditam que ainda há subnotificação do crime. Segundo eles, vários fatores contribuem para o fenômeno, como o receio da vítima de sofrer um novo preconceito por parte da polícia e ter sua situação desqualificada, a falta de informações sobre como proceder e o senso comum de que “não vai dar em nada”.

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Feridas profundas

O medo de ser revitimizada e que o processo não levasse a nada quase fez com que uma professora do ensino médio desistisse de denunciar um episódio de racismo que viveu em sala de aula em agosto do ano passado. Ainda muito abalada, ela não quis se identificar. “Fiquei muito fragilizada e estava com medo de também de reviver esse trauma. Destruiu a minha vida profissional, pelo menos naquele momento. Eu achei que não servia mais para ser professora, porque se passasse por aquilo de novo não iria aguentar”, relata.


Ela conta que durante uma aula em uma escola da rede pública de Belo Horizonte percebeu que três alunas não estavam fazendo a atividade proposta, e sim gravando vídeo para as redes sociais com o celular. Ela se aproximou e pediu que o aparelho fosse guardado. Porém, uma das adolescentes postou o vídeo do momento em seu perfil do Instagram com a frase: “A macaca da professora chamando nossa atenção”.

“Este é o caminho que nós temos que seguir para que esse criminoso – porque o racista é um criminoso e isso tem que ser dito nessas palavras – seja responsabilizado da mesma forma que nós queremos a responsabilização de homicidas, ladrões, traficantes e corruptos”


Marcelo Colen
Diretor de Diversidade e Inclusão da OAB-MG


A postagem foi printada e levada à direção da escola por outro aluno da classe. Integrantes da diretoria chamaram a professora para informar sobre o ocorrido. A educadora registrou o boletim de ocorrência, e as alunas foram chamadas para uma conversa na presença dos pais.


Ela conta que sentiu falta de um apoio maior da escola e, depois de uma semana, decidiu pedir demissão. Fez terapia para superar o trauma e, depois de um mês, teve forças para buscar um novo emprego. “Senti que a minha vida voltou a ter um sentido. Fui entendendo que o problema não era eu, não era a minha profissão, não era como eu me portava ou quem eu era. O problema era, de fato, a sociedade em que estamos inseridos, que é uma sociedade racista”, afirma a professora.

Exemplo

Suemes e a professora se tornaram exemplo pela coragem de denunciar um ato racista. Elas buscaram na Justiça uma forma de mudar o mundo para que os mais jovens não passassem pelos mesmos sofrimentos. “A escola tinha uma quantidade muito grande de alunos negros. Nesse período de uma semana que eu continuei na escola, alguns deles vieram conversar comigo e disseram que acharam importante o que fiz, que ninguém deve fazer isso com a gente. Então, de uma forma ou de outra, serviu para conscientizar outros alunos negros de que quando tem um caso desse não podemos deixar impune”, analisa.


A professora relatou também microagressões que sofre no dia a dia, como questionamentos sobre seus cabelos. Ela lamentou que comentários como esse ainda são aceitos e dificilmente vistos como discriminação. Suemes conta que o racismo velado é forte em Florestal, onde se localiza o câmpus da Universidade Federal de Viçosa, a ponto de ser vigiada quando entra em um supermercado. Situações como são consideradas normais e falas preconceituosas são vistas como brincadeiras.


“Vejo que as pessoas que podem ajudar não querem fazer nada. Eles sempre dão uma desculpa: 'processo não vai dar em nada', ou então chamam de 'mimimi' e por aí vai. Tenho dois sobrinhos negros e não quero que eles passem por essa situação”, reflete a estudante.


Caminhos

Na luta contra o racismo, Alexandre Braga acredita que a punição não está surtindo o efeito desejado. Ele argumenta que as penas são brandas e não promovem uma reflexão no autor do crime. “Na prática, não tem condenação nenhuma. De fato, quem está preso por causa de racismo no Brasil? Praticamente ninguém”, questiona.


Para o diretor da Unegro, a educação é a chave para uma verdadeira mudança. Ele defende o ensino da história negra e sobre personalidades negras nas escolas do país. “É mais fácil ensinar uma criança a não ser racista do que quando ela vira adulta. É preciso inserir valorização da cultura negra, mas não é só falar de capoeira e de samba, isso todo mundo já sabe. Mas ninguém sabe que nós tivemos engenheiros negros, quem foram nossas principais escritoras negras, da contribuição na medicina, na psicanálise e outras áreas”, defende.


Marcelo Colen acredita que uma real mudança na sociedade e a diminuição dos casos de racismo só vão acontecer com o combate do racismo estrutural, que impede o acesso das pessoas negras a espaços de fala e poder. “Esse é o racismo que tem que ser combatido a partir de um processo educativo, de políticas públicas, de medidas afirmativas e que, no meu entendimento, ainda está bastante carente de atenção”, declara.


A perspectiva de Colen está alinhada às iniciativas do MPMG. Em 2021 o MPMG criou a Coordenadoria de Combate ao Racismo e Todas as Outras Formas de Discriminação que promove a interlocução entre Promotores de Justiça, instituições e sociedade civil. Entre as iniciativas está o Projeto Tenório, criado para ampliar a presença de pessoas negras no quadro de promotores de Justiça no Ministério Público, oferecendo bolsas de estudo, apoio financeiro e acompanhamento psicológico a candidatos/as negros/as do concurso. “Acreditamos que combater o racismo é, igualmente, garantir oportunidades reais para que a população negra ocupe espaços que historicamente lhe foram negados”, afirmou a Promotora de Justiça, Nádia Estela Ferreira Mateus. 

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