SpiN-Tec: por que vacina da UFMG injeta esperança de prevenir mais doenças?
Desenvolvida com tecnologia do CT Vacinas/UFMG, vacina contra COVID-19 é mais barata e eficaz e disponibiliza técnica para imunizantes contra outras doenças
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Há cinco anos, o Centro de Tecnologia em Vacinas da UFMG (CTVacinas) está desenvolvendo a SpiN-Tec, primeira vacina brasileira contra a Covid-19. Pela primeira vez, um imunizante nacional finaliza a fase 2 dos testes clínicos. Restando mais um passo para concluir todo o ciclo de pesquisa até a aprovação dos testes em humanos, além do feito inédito, o projeto inaugura um novo modelo de produção nacional de vacinas, com potencial para influenciar o futuro da imunização no Brasil.
A ideia da SpiN-Tec nasceu ainda em 2020, nos primeiros meses da pandemia, quando o CTVacinas/UFMG decidiu usar sua expertise no combate à leishmaniose como ponto de partida para a nova empreitada. A unidade já tinha longa trajetória de desenvolvimento de novas tecnologias para vacinas, conta a professora Ana Paula Fernandes, integrante do Comitê Gestor do Centro de Tecnologia.
O primeiro ano foi dedicado à construção da molécula da vacina ou de produção de antígenos, ou seja, moléculas que desencadeiam a produção de anticorpos. Os testes em animais também foram conduzidos nesse período. “Apresentamos todos esses dados para a Anvisa, que autorizou o início da fase 1 do ensaio clínico”, explica Ana Paula.
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Desde o começo, o objetivo foi desenvolver uma vacina eficaz e mais barata. “Com a chegada da pandemia, usamos essa experiência e esse conhecimento para conceber o princípio da vacina que a gente acreditava que seria a alternativa mais eficaz e mais barata que o Brasil teria condições de produzir em escala”, conta a professora. Na época, vacinas de RNA ainda estavam em fase experimental, e fórmulas como a da AstraZeneca apenas começavam a ser distribuídas.
A UFMG optou por trilhar um caminho diferente. Em vez das vacinas de RNA mensageiro, os pesquisadores apostaram em uma proteína recombinante quimérica, uma combinação de partes do vírus inseridas em uma bactéria, que passa a produzir o antígeno. “É proteína recombinante porque a gente transfere o gene do antígeno do SARS-CoV, o vírus da Covid, para uma bactéria e coloca essa bactéria para produzir esse antígeno. Ela é quimérica porque combina regiões do genoma do vírus que codificam dois antígenos”, explica Ana Paula.
As diferenças da vacina brasileira
Uma das grandes apostas da SpiN-Tec está justamente em seu mecanismo de ação. Diferentemente das vacinas de RNA, que atuam na produção de anticorpos neutralizantes e precisam ser atualizadas a cada nova variante, a SpiN-Tec investe na resposta imune celular, uma reação imunológica menos suscetível às mutações do vírus. “A nossa vacina tem a perspectiva de ser produzida constantemente, sem novas variações e com a possibilidade de induzir proteção, mesmo que o vírus esteja variando”, destaca a especialista.
Essa expectativa tem se confirmado nos estudos. Segundo os pesquisadores, os testes pré-clínicos já demonstraram que a vacina é eficaz contra diferentes variantes do causador da COVID-19. “As vacinas tradicionais usam fragmentos do vírus original combinados com partes de variantes conhecidas. O problema é que, quando uma nova variante aparece, não se sabe como o imunizante vai reagir”, comparou o coordenador do CT Vacinas, Ricardo Gazzinelli, em coletiva de imprensa realizada durante as primeiras fases de imunização.
Caminho científico até a fase 3 de testes
O processo de desenvolvimento de vacinas é um processo extenso. Ana Paula Fernandes explica que, após o desenvolvimento da estrutura da molécula, os pesquisadores iniciaram os testes em animais. “A gente vacinava os animais e desafiava com o vírus. Quando concluímos essa fase, nós apresentamos uma documentação para a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), mostrando esses dados.”
Com o aval da Anvisa, o grupo de pesquisadores da UFMG iniciou, em novembro de 2022, a primeira fase do ensaio clínico. “A gente estabeleceu que os voluntários deveriam ser indivíduos ou que tinham sido vacinados com a AstraZeneca ou com a CoronaVac, que naquele momento eram as vacinas que estavam disponíveis, e a gente deu nossa vacin como reforço”, explica a especialista.
Tecnologia nacional rumo a novas vacinas
A SpiN-Tec representa um salto de autonomia científica e tecnológica para o país. É a primeira vacina brasileira contra a Covid-19 desenvolvida com tecnologia e insumos 100% nacionais. Ao todo, foram investidos cerca de R$ 500 milhões em recursos públicos, com destaque para os R$ 310 milhões do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e os R$ 30 milhões da Prefeitura de Belo Horizonte.
A infraestrutura adquirida ao longo do processo abre portas para novos imunizantes. O conhecimento acumulado permite que os pesquisadores brasileiros avancem de forma independente no combate a outras doenças, afirmam os pesquisadores do projeto. A produção da SpiN-Tec será feita em parceria com a Fundação Ezequiel Dias (Funed), e pode, futuramente, contar com laboratórios privados.
Agora, com o fim da fase 2, a pesquisa caminha para o último passo. A terceira e última fase de testes clínicos, esperada para 2026, vai contar com cerca de 5 mil voluntários, desta vez de todo o Brasil. Nessa nova etapa, os testes ganham amplitude e buscam comprovar, em larga escala, não apenas a segurança, mas principalmente a eficácia da vacina na prevenção da COVID-19. “Ainda estamos em discussão com a Anvisa para dar continuidade ao estudo e avançar para a fase 3”, explica Ana Paula Fernandes, professora da UFMG e integrante do CT-Vacinas.
Mesmo que a autorização para a fase 3 ainda esteja em análise, a pesquisadora considera que o que já foi alcançado é, por si só, um marco para a ciência nacional. “Essa é uma vacina concebida desde o início por cientistas do nosso país, com uma proposta inovadora, baseada em resposta celular e produzida com proteína recombinante. É uma conquista que vai muito além da CIOVID”, afirma a pesquisadora. “A patente é nossa, temos infraestrutura e condição para produzir essa vacina. Estou muito otimista que a gente deve ir para a fase 3, porque, como mostram os dados até aqui, a vacina é segura”, completa.
Entrevista
João Victor Carvalho
Pesquisador e doutorando em microbiologia, primeiro a tomar a vacina SpiN-Tec
“Confiamos no método.Sabia que era seguro”
Como pesquisador e doutorando em biologia, o que mais chamou sua atenção na proposta da SpiN-Tec, em termos científicos?
Não atuo diretamente com vacinas, mas acho interessante que se trata de uma tecnologia de proteína recombinante – ou seja, é usada uma proteína viral, sem o material genético do vírus nem o vírus atenuado. São apenas fragmentos, que não causam, por exemplo, sintomas de gripe após a vacinação contra a gripe. Isso reduz os efeitos adversos e aumenta a segurança. É a primeira vez que essa tecnologia é produzida no Brasil, o que abre caminho para desenvolver
mos outras vacinas, agora que já dominamos o processo e o know-how necessário.
Como foi para você, na condição de cientista, também se colocar na posição de voluntário de um estudo clínico?
No começo, pensei como um ato de cidadania, de ajudar no progresso do Brasil. Depois, lembrei daquele argumento de que, se a vacina é segura, os próprios cientistas deveriam testá-la. Foi o que fiz. Confiamos no nosso método e nas regulações da Anvisa e dos comitês de ética. Sabia que era seguro, mesmo sem garantia de eficácia. Então, decidi participar.
Como você avalia a percepção da sociedade sobre a ciência e a vacinação hoje, especialmente após a pandemia?
Vivemos um tempo de relativismo extremo. A ideia de que não existe verdade absoluta é correta, mas, quando isso vira “tudo é verdade”, abrem-se portas para a disseminação de mentiras sem base. Na ciência, hipóteses são sustentadas por dados. Hoje, porém, é mais fácil negar isso, e discursos anticientíficos ganham força, impulsionados pelas redes sociais. Percebo que o papel das universidades vem sendo cada vez mais negado e até combatido, o que virou uma agenda. Apesar desse cenário sombrio, acredito que temos capacidade de reagir e reconquistar espaço.
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Você acredita que a experiência com a SpiN-Tec pode inspirar novas gerações de cientistas e pesquisadores no Brasil e consolidar a visão da sociedade sobre a pesquisa científica?
Com certeza. O melhor tipo de divulgação científica é a demonstração prática. Mostrar que o que se desenvolve na UFMG tem valor social reforça o papel da universidade. Muitas vezes, trabalhamos em contextos específicos, mas, quando lidamos com vacinas e medicamentos, a conexão com a sociedade fica evidente. Isso gera um argumento forte: “Estamos trabalhando para melhorar sua vida. Você realmente quer combater isso?”.