Coragem ou solidariedade? O que moveu voluntários da 1ª vacina brasileira?
Contamos, pelas histórias de voluntários, a motivação de quem se ofereceu para testar a 1ª vacina 100% nacional contra a Covid-19
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Era 25 de novembro de 2022 e o fantasma da pandemia ainda assombrava a humanidade quando João Victor Carvalho tornou-se, aos 24 anos, o primeiro brasileiro a receber a dose da SpiN-Tec, vacina contra a Covid-19 desenvolvida no Brasil. De lá para cá, foram 356 voluntários nas fases 1 e 2 dos testes clínicos do primeiro imunizante 100% produzido no país em um momento de insegurança e crise sanitária global.
Pioneiros que abriram caminho para o passo decisivo, com a participação de mais de 5 mil voluntários, desta vez de todo o país, necessário para concluir o ciclo de pesquisa, conduzido pelo Centro de Tecnologia de Vacinas (CTVacinas) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É o estágio final antes que o imunizante possa ser aprovado e disponibilizada à população, o que se espera ocorrer em 2028. Pode se tornar também o marco de uma tecnologia 100% nacional que abre caminho para prevenção de outras doenças.
Por trás de cada dose de vacina agora à espera do sinal verde para a fase final de análise, existiu também a coragem de quem se dispôs a testar, no próprio corpo, algo que poderia proteger milhares de vidas. Uma determinação indispensável, já que desenvolver um imunizante é um processo longo e cheio de etapas. Antes de chegar aos testes em humanos, há fases em laboratório e em animais. No total, são três etapas: pesquisa básica e testes não clínicos; estudos clínicos (subdivididos em três fases); e, por fim, o registro da fórmula. É o que determina a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável por regulamentar esse caminho.
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No caso da SpiN-Tec, vacina 100% brasileira, esse percurso contou com a colaboração de voluntários como João Victor Carvalho, Claudia Conceição, Luciane Soares e Maria Adelaide Bréscia, que, superada a fase crítica de testes, compartilharam suas histórias com os leitores do Estado de Minas. Para eles, se apresentarem como voluntários não foi sacrifício, mas uma missão. E, sobretudo, uma forma de contribuir para o futuro da ciência nacional. E, por que não acrescentar, com a saúde da humanidade.
Por trás da decisão de se voluntariar, cada um teve de seguir uma rotina rigorosa de medições e registros, feitos com oxímetros, termômetros e caderninhos que acabaram por virar fiéis companheiros. “Não tive nenhum medo, só achei que seria interessante ajudar”, resume João Victor Carvalho, que tomou a vacina em um evento na UFMG, acompanhado por pesquisadores e veículos de imprensa, com transmissão pelas redes sociais da instituição. Naquele dia, além de João Victor, duas pessoas receberam a vacina. Essa amostragem inicial, tecnicamente chamada de “coorte sentinela”, foi avaliada por sete dias antes da ampliação do número de imunizados, que, ao final da primeira fase de testes clínicos, alcançou 36 pessoas.
Dos laboratórios para o braço
João Victor já havia tomado a Coronavac durante a pandemia, lá em sua cidade natal, Itabira, na Região Central de Minas. Pesquisador e doutorando em microbiologia na UFMG, ele soube dos testes com a SpiN-Tec ainda durante o mestrado, e não hesitou em se voluntariar. “Eu confiava que tudo era seguro. Existe um método para garantir a segurança, não só um método, mas toda uma regulação que permite que questões envolvendo vacinas e medicamentos sejam testadas em humanos”, afirma. Para ele, foi um ato tão natural que nem pensou em contar para a família, que acabou sabendo da atitude pela televisão. “Eles acharam bem legal, na verdade. Não teve discurso contrário, no máximo perguntavam se estava tudo bem”, contou ao EM.
Todos os voluntários receberam um kit com termômetro, oxímetro e um caderno de anotações. Era o início de um diário de bordo da ciência, com páginas preenchidas diariamente durante um ano inteiro. “A gente media temperatura e saturação de oxigênio de manhã, assim que acordava, e à noite, pouco antes de dormir. Se sentisse qualquer coisa, tinha que anotar. Dor, febre, vermelhidão no local da aplicação, qualquer desconforto, por menor que fosse”, conta o “voluntário zero”.
As visitas médicas também faziam parte do protocolo. Inicialmente eram quinzenais, depois mensais e, por fim, trimestrais. Sempre no Câmpus Saúde da UFMG, na Região Hospitalar de BH, com coletas de sangue e exames. Tudo monitorado, anotado e acompanhado com o zelo de um estudo que agora está prestes a dar novos rumos à imunização no país. “Deram assistência médica durante todo o período. Eu mesmo não tive nenhuma reação, nenhuma complicação”, afirma. João Victor conta que ficou gripado uma vez durante o período de avaliação, o que precisou ser comunicado, mas que nada teve a ver com a vacina.
A fase da qual João Victor participou teve o intuito de “avaliar a segurança e possíveis reações indesejáveis no local da aplicação da vacina ou no organismo”, como prevê o protocolo da Anvisa. Nessa etapa, os voluntários precisavam já ter sido imunizados a AstraZeneca ou Coronavac. O objetivo era comparar o desempenho da SpiN-Tec como dose de reforço. “Os dados mostraram que, quando a gente dava a SpiN-Tec e comparava com um grupo que recebeu a vacina que já estava no mercado, na época a AstraZeneca, a gente tinha uma vacina tão segura quanto, ou mais”, conta a integrante do Comitê Gestor do CTVacinas, professora Ana Paula Fernandes.
A largada para a segunda fase
Com os dados positivos da primeira fase dos testes da SpiN-Tec, os pesquisadores apresentaram os resultados à Anvisa, que deu sinal verde para a continuidade do estudo. A segunda etapa dos testes clínicos foi iniciada em setembro de 2023 e concluída no início de maio de 2025, com a participação de 320 voluntários. Desta vez, o foco foi “avaliar a dose, a forma de vacinação e a capacidade de gerar anticorpos”, conforme estabelece a Anvisa. O estudo seguiu o chamado modelo duplo-cego: metade dos participantes recebeu a SpiN-Tec e a outra metade, a vacina Pfizer bivalente. Só no fim do acompanhamento, após 12 meses, é que os participantes souberam qual dose tinham recebido.
Aos 55 anos, a profissional de saúde Luciane Soares, já imunizada com vacinas da AstraZeneca e da Pfizer, se voluntariou, em novembro de 2023, para participar dos testes clínicos da SpiN-Tec. Chegou ao estudo por meio de uma postagem nas redes sociais, passou por avaliação médica, coleta de sangue, uma bateria de exames e, só então, foi chamada para receber a vacina. “Nem os médicos sabiam qual seria, porque vinha fechada, lacrada. Mas, eles me garantiram que eu estaria imunizada, que não precisaria tomar uma dose de reforço, porque eu tinha tomado uma ou outra”, contou ao EM.
A rotina de Luciane, assim como a de outros voluntários, foi meticulosa e incluía anotações diárias de temperatura e sintomas, principalmente nas primeiras semanas após a aplicação da vacina. “Fui ao laboratório durante quatro semanas seguidas, e toda vez o médico aferia pressão, fazia exames clínicos, de sangue e urina”, conta. Passado o primeiro mês, as anotações eram exigidas apenas em caso de sintomas respiratórios. Quando teve um quadro gripal, ela recebeu um novo diário de bordo, voltado para casos de suspeita ou contato com Covid-19. “Até sair o resultado do exame, tinha que voltar a anotar a temperatura, saturação, tudo isso, se eu estava tendo sintoma ou não”, conta.
“Tomaria a vacina até na testa”
Durante o estudo, os acompanhamentos sobre a saúde de Luciane também eram feitos por telefone. “Eles entraram em contato para saber como eu estava me sentindo, se tinha tido algum sintoma. Foram muito atenciosos. Não tive nenhum receio”, acrescenta ela, que, por fim, soube ter sido imunizada com a SpiN-Tec. Defensora das vacinas, diz que tomaria qualquer uma, “até na testa, se fosse preciso”.
Ao longo do estudo, os voluntários mantiveram suas rotinas normalmente: trabalharam, se alimentaram como de costume e permaneceram em contato com amigos e familiares. A única recomendação médica foi não fazer doação de sangue durante o período de testes, porque, segundo explicaram à educadora física Claudia Conceição, de 58 anos, “poderia comprometer momentaneamente a resposta imunológica”, lembra ela, doadora regular de sangue e medula. “As pessoas acham que é só chegar ali, tomar a vacina e ir embora, ficar em casa esperando. Mas não é. Tem acompanhamento, e eu sempre fui muito bem tratada por todas as pessoas”, conta.
Claudia já havia tomado as vacinas da AstraZeneca e da Pfizer ao longo da pandemia. Quando surgiu a chance de contribuir com o desenvolvimento de um novo imunizante, do qual ficou sabendo pela televisão, não hesitou. A rotina de voluntária, embora exigisse certa disciplina, foi encarada com naturalidade e propósito. “Sempre quis participar de algo que pudesse ajudar o bem-estar coletivo”, diz, ao relatar também que perdeu sua sogra para a COVID-19. “Eu acho que ter feito parte desse teste não custou nada. A única coisa que eu estava doando era o meu tempo”, disse. Assim como a sogra de Claudia, mais de 700 mil pessoas morreram vítimas da Covid-19 no Brasil, entre 2020 e 2025, segundo dados do Ministério da Saúde. Em Minas Gerais, foram 67.158 mortes, sendo 8.723 apenas em Belo Horizonte.
A profissional de educação física acredita que a questão da vacina se tornou algo político e ideológico. Na avaliação dela, a recusa muitas vezes nasce de uma oposição a figuras públicas e não de uma análise racional sobre saúde coletiva.
A emoção da última voluntária
No dia 8 de maio de 2025, Maria Adelaide Bréscia, comerciante de 61 anos, foi a última voluntária da fase 2 a comparecer ao Câmpus Saúde da UFMG. Encerrava-se oficialmente a etapa de acompanhamento regular desse estágio do estudo e, junto dela, mais um capítulo marcante da ciência brasileira. Emocionada, Maria Adelaide resumiu o que a motivou desde o início:. “Eu quis ajudar, porque achei interessante para o desenvolvimento de uma vacina totalmente brasileira”.
Assim como os demais participantes, ela seguiu à risca o protocolo estabelecido pelos pesquisadores: passou por exames frequentes, fez anotações diárias sobre seu estado de saúde e manteve contato constante com a equipe do estudo. Mas, diferentemente de outros voluntários ouvidos pela reportagem, que relataram pouca surpresa entre amigos e familiares, Maria Adelaide se viu no centro de várias reações inesperadas. Muitos ficaram espantados com sua disposição em participar de testes clínicos e chegaram a chamá-la de “cobaia”.
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Com tranquilidade, ela rebateu os comentários. “Eu falei: ‘Gente, não é cobaia, estou sendo acompanhada’. Tanto que fazia exames a cada dois, três meses”, conta. “Não tive nenhuma intercorrência, dor, nada…”, completa. Para ela, participar de um estudo como esse, especialmente em um contexto de insegurança sanitária e avanço do negacionismo, foi também uma forma de afirmar a importância da ciência. “Se ninguém se dispõe a ajudar, como é que vão desenvolver alguma coisa?”, questiona.