PRESSÃO NA SAÚDE

João Paulo II: um hospital além do limite

Unidade de atendimento infantil está com a capacidade extrapolada em 120% e todos os leitos de CTI ocupados. Profissionais relatam "déficit crônico" de pessoal

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No epicentro da crise respiratória que se espalha por Minas Gerais, o Hospital Infantil João Paulo II, no hipercentro de Belo Horizonte, é um retrato da sobrecarga no sistema de saúde. Com capacidade extrapolada em 120%, o hospital tem recebido a média de 400 atendimentos diários, enquanto lida com todos os leitos de CTI pediátrico ocupados. Em abril, 2.989 crianças de até 9 anos foram internadas no estado por doenças respiratórias, um salto de quase 70% em relação ao mesmo período do mês anterior, quando houve 1.763 hospitalizações.


A sobrecarga atual, no entanto, é o desfecho de um processo arrastado. Profissionais relatam que o João Paulo II opera com “déficit crônico” de pessoal há anos. Se antes o plantão contava com até 10 pediatras, hoje há turnos com apenas dois profissionais cobrindo toda a emergência. “O máximo que chega hoje são cinco pediatras no plantão. Isso é muito abaixo do necessário para o volume e a complexidade dos casos que o hospital recebe. Acaba que os setores ficam ali com escala mínima”, alerta Cristiano Túlio Maciel Albuquerque, endocrinologista pediátrico e diretor do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais (Sinmed-MG).


Referência no tratamento de doenças respiratórias graves, o João Paulo II tenta se equilibrar entre a demanda crescente e a falta de estrutura, em meio a pressão do aumento das doenças respiratórias, que já causaram a internação de 2.989 crianças de até nove anos só em abril deste ano. “ A unidade tem 20 leitos pediátricos, todos ocupados, parte deles foi aberta no início de abril em uma tentativa do governo estadual de se antecipar ao período sazonal de pico das doenças respiratórias. “O paciente entra no pronto-atendimento e não é liberado, tem que ficar lá em observação 24 horas ou para melhorar ou para internar. Aí quando chega a hora de internar, não tem vaga”, relata Cristiano. “O hospital já está com pacientes aguardando no corredor”, reforça o médico.

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Procurada pela reportagem, a Fhemig confirmou a sobrecarga no pronto atendimento da unidade, que atualmente recebe, em média, 190 pacientes por dia, um salto de 50% em comparação aos períodos fora da sazonalidade das doenças respiratórias. Só em abril, foram registrados 5.564 atendimentos. Em nota, a fundação destacou que “a equipe de acolhimento classifica e prioriza os casos mais graves, porém todos os pacientes são assistidos”.


Como parte das medidas emergenciais anunciadas após o decreto estadual de emergência em saúde pública, a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig) lançou no sábado (3/5) um processo seletivo para contratar 27 profissionais para o João Paulo II e o HPS João XXIII, incluindo sete pediatras. Também foram abertas outras 83 vagas para unidades da fundação na capital. Dez leitos extras de UTI foram criados no HPS João XXIII, em área antes destinada ao atendimento de adultos. “Mas elas também não estão sendo suficientes, não estão adequadas”, aponta Cristiano.

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A reportagem esteve no João Paulo II anteontem (7/5) e encontrou a sala de espera repleta de crianças nos colos de mães e pais. Eram 15h quando o motorista Adriano Fernando dos Santos, 42, segurava o filho de três anos no colo, cansado da espera. “Tá lotado, demorando muito. Lá no telão tá marcando previsão de quatro horas para atendimento”, contou. Ele aguardava desde o meio-dia, chamado pela escola do pequeno Samuel, que apresentava febre alta e parecia cada vez mais abatido. “Ele está gripado, com febre desde sexta-feira (2/5)”, conta.


Na noite anterior, Adriano já havia tentado atendimento na mesma unidade, mas desistiu após cinco horas de espera. “Cheguei às 19h e fomos embora meia-noite. Tinha compromisso cedo hoje. Não dava pra esperar mais”, disse. Ele conta que o filho mais velho, de nove anos, já enfrentou episódios graves de pneumonia e bronquiolite. Quando ainda era bebê, também foi diagnosticado com meningite. Agora, é Samuel quem ocupa a preocupação do pai. Mesmo classificado com pulseira verde, indicativa de caso pouco urgente, o histórico preocupava, já que Samuel tem bronquite e que já passou por uma internação durante a pandemia de COVID-19. “Não pode deixar, não. Depois piora. Já passamos por isso com o mais velho, que tem nove anos”, conta.


Os dados reforçam a inquietação de Adriano. Crianças entre 1 e 9 anos concentram a maior parte das internações por doenças respiratórias em Minas. Em abril, foram 1.624 hospitalizações nessa faixa etária, um aumento de quase 50% em relação a março, conforme dados do Painel de Doenças Respiratórias da Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG). Boa parte desses casos envolveu quadros graves de bronquiolite, infecção respiratória comum em recém-nascidos que, muitas vezes, exige suporte de oxigênio e acompanhamento intensivo.

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Quem viveu essa experiência foi Laís Almeida, autônoma de 32 anos. Com a filha de seis meses nos braços e a mais velha, Ana Clara, de nove anos, caminhando ao lado, Laís cruzou pela terceira vez em poucos meses as portas do João Paulo II anteontem (7/5). Moradora de Santa Luzia, na Grande BH, ela percorreu cerca de 30 quilômetros até Belo Horizonte para uma consulta marcada com meses de antecedência. “Foi bem rápido. Aqui o atendimento, quando é consulta, costuma ser rápido mesmo”, contou. Desde que Aysla, a filha caçula, teve um episódio grave de bronquiolite em janeiro, Laís precisa retornar ao hospital com frequência.


Na época, a bebê precisou ser internada por 16 dias no Centro de Terapia Intensiva (CTI) do hospital. Desde então, faz acompanhamento constante por conta das sequelas respiratórias, especialmente o chiado persistente no peito, popularmente chamado de "miado de gato". “Ela tosse desde quando tinha um mês de vida. Tossia muito, e depois começou a chiar. Ficava muito cansada. Eu fiquei preocupada, levei no hospital. Estava com muito cansaço respiratório, embora não tivesse febre”, lembra Laís.


A internação foi um período de angústia. “Foi horrível. O tempo todo com medo. Eles diziam que se ela não reagisse ao respirador, teria que ser entubada. Eu ficava apavorada, porque a entubação é bem mais agressiva, ainda mais para um bebê tão pequeno. Ela ia fazer três meses, estava só a alguns dias de completar”, conta. Durante os 16 dias em que Aysla esteve internada, Laís mal saiu do hospital. Dormiu sentada, chorou sem poder pegar a filha no colo, e enfrentou a ansiedade constante por não saber o que vinha pela frente. “Ela chorava e eu não podia pegar. Isso deixava tudo ainda mais difícil para mim”, relata.
Passado o susto, a bebê se recuperou bem, mas a bronquiolite deixou rastros. Desde então, as idas ao João Paulo II se tornaram parte da rotina da família. “Eles acompanham o chiado que ela ainda tem, que pode piorar. Hoje, depois da consulta, resolveram passar uma bombinha. Vai ser bom, porque ajuda e talvez evite que eu precise voltar com tanta frequência”, disse. Como Aysla, 1.365 bebês com menos de um ano foram internados em Minas por doenças respiratórias, mais que o dobro do registrado em março (676).


FALTA ESTRUTURA

A limitação física do hospital compromete qualquer tentativa de expansão. Instalado em um prédio da década de 1950, o João Paulo II teve um anexo construído entre os dois blocos principais onde antes funcionava um estacionamento. A nova ala, com seis andares, foi finalizada há quase 11 anos, mas nunca foi inaugurada. “Ele (o hospital) sofre com a falta de espaço físico, de adequação da estrutura. A Fhemig tem equipamentos embalados que não pode ligar, porque a rede elétrica não suporta”, conta o diretor do Sinmed, que defende a construção de uma subestação elétrica no local.


A conclusão do projeto está nos planos do governo, que pretende usar recursos do acordo de reparação pelo rompimento da barragem da Mina de Córrego do Feijão, em Brumadinho. A promessa, no entanto, na avaliação de Cristiano, esbarra na carência de profissionais. “Não tem recursos humanos para pôr esse prédio para funcionar. Então, por isso, eles ficam adiando”, diz. A unidade, assim como outras da rede pública, encontra dificuldade de contratar pediatras e intensivistas. “Isso é uma tônica na rede Fhemig, mas no João Paulo II isso tem sido mais grave”, aponta.


Para ele, o maior gargalo do João Paulo II está na ausência de uma política pública efetiva de contratação de profissionais. Os baixos salários pagos pelo executivo estadual e os reajustes abaixo da inflação tornam a contratação e a retenção de profissionais uma missão quase impossível. “Hoje, o Estado tem o maior déficit salarial do setor de saúde. A perda para a inflação chega a 36%. Com o aumento da contribuição previdenciária, esse déficit chega a 40%”, afirma. O hospital criou o Plantão Médico Complementar (PMC), que seria uma hora extra para que os médicos da equipe pudessem fazer uma hora extra. “Mas esse PMC é um valor muito baixo”, conta.


Essa carência se espalha por toda a cadeia de atendimento. Também fisioterapeutas, especialmente respiratórios, e a escala não contempla plantões de 24 horas. “A equipe é multidisciplinar, não é só médico. A Fhemig fez concurso público, teve muitos aprovados, mas chamou só o número mínimo de vagas previsto no edital”, conta Cristiano. Ele ainda relata que a rede estadual retirou os plantões da psicologia, sob o argumento de que o serviço seria “dispensável em momentos de crise”. “Os próprios médicos estão se queixando que o trabalho fica muito mais difícil sem esse apoio, porque tem óbitos, tem situações de violência. Antes, a gente tinha plantão da psicologia e hoje com a equipe reduzida, não tem”, aponta.


A tentativa de suprir essa lacuna com profissionais terceirizados, que chegam a receber o dobro dos efetivos, esbarra na baixa capacitação. O hospital é referência em doenças complexas e raras, exigindo conhecimento especializado que terceirizados, em geral, não possuem. “Muitos não dão conta do serviço e precisam ser substituídos por alguém da equipe, mesmo recebendo mais. Isso causa uma falta de estímulo para um médico efetivo para pegar um plantão extra”, afirma. Ele reforça que a entidade e o próprio corpo clínico não é contrário à terceirização, desde que o recurso seja utilizado em momentos pontuais, como neste período de pico de doenças respiratórias, para complementar a escala.


À reportagem, a Fhemig negou a falta de profissionais e ressaltou medidas adotadas para reforçar o atendimento, como o reforço emergencial do quadro clínico e a convocação de aprovados no último concurso público. Em nota, a fundação afirmou que “as escalas da equipe multidisciplinar estão completas e vêm sendo ampliadas desde março. Os casos mais graves são priorizados conforme a classificação de risco, mas todas as crianças são devidamente atendidas, não havendo, portanto, qualquer situação de desassistência”.


O João Paulo II é um dos hospitais que devem ser incorporados ao novo complexo hospitalar planejado para 2028 no antigo terreno do Hospital Galba Velloso, no Bairro Gameleira. Paralelamente, tramita na Assembleia Legislativa um projeto de lei (PL 2.127/2024) que propõe a terceirização da gestão de hospitais da Fhemig via um Serviço Social Autônomo (SSA), modelo já adotado no Hospital Regional Antônio Dias, em Patos de Minas. A proposta prevê que o SSA administre os hospitais Alberto Cavalcanti, no Bairro Padre Eustáquio, na Região Noroeste; o Eduardo de Menezes, no Bairro Bonsucesso, Região do Barreiro; a Maternidade Odete Valadares, no Prado, Região Oeste; e próprio João Paulo II. O texto aguarda análise da Comissão de Fiscalização Financeira e Orçamentária para ir a plenário. n

Terceirização barrada

O Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE-MG) manteve por unanimidade a decisão individual do conselheiro Licurgo Mourão proibindo a Fundação Hospitalar de Minas Gerais (Fhemig) de firmar contrato com alguma entidade terceirizada para gerir o Hospital Maria Amélia Lins. Desta vez, a análise do recurso foi feita pelo Tribunal Pleno, composto por todos os membros, incluindo conselheiros e auditores. A medida liminar do TCE-MG, portanto, continua impedindo que a Fhemig conceda a gestão do hospital para o consórcio público Instituição de Cooperação Intermunicipal do Médio Paraopeba (Icismep), que venceu a concorrência pública. Paralelamente, na última semana o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), a pedido do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), determinou que o governo de Minas Gerais e a Fhemig retomem o funcionamento do ambulatório, enfermarias e bloco cirúrgico do Hospital Maria Amélia Lins. Perguntada sobre como pretende agir para cumprir a decisão do TJMG, a Advocacia-Geral do Estado (AGE-MG) informou que ainda não foi intimada da decisão e irá se manifestar nos autos do processo.

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