Acima dos próprios temores
"Certamente esconde dificuldades, limitações e ansiedades que não somos capazes de imaginar"
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Entre os amigos que me acompanharam durante duas semanas por Portugal havia um que não fazia uma viagem longa há muitos anos. Clínico geral, há cerca de 20 anos foi diagnosticado com insuficiência renal a ponto de ser necessário um transplante. Um de seus irmãos doou o rim o que lhe possibilitou prosseguir a vida natural e tranquilamente. Trabalhou até poucos anos atrás, criou dois filhos, realizou muitos sonhos. Costuma dizer que seu corpo exibe alguns acessórios desnecessários, mas que ainda lhe pertencem, se referindo aos rins falidos.
Sempre admirei a maneira com a qual ele se comporta perante as adversidades. Personagem centrado e equilibrado, características não tão comuns em nossa turma (incluindo-me), ele vem nos ensinando a lidar com as adversidades com otimismo e bom humor às vezes sarcástico. Também é sempre bom tê-lo por perto quando um ou outro alterado inicia uma discussão calorosa. Ele sempre entra quando o caldo está prestes a entornar (exceto quando o assunto é futebol) e coloca um ponto final na discórdia. É um ótimo mediador de conflitos, os dos outros e de seus próprios. Ao menos é o que tenho visto desde os anos 90 quando nos conhecemos ainda estudantes.
Fato é que o transplante tem validade e seu terceiro rim acabou falindo também e um segundo transplante é ainda mais difícil conseguir. Há muitos anos precisou iniciar uma diálise e com o tempo a hemodiálise. Chegamos a viajar pelo Brasil vendo-o se afastar algumas horas, se trancar no quarto para fazer o tratamento, dia sim dia não. Agora precisa ir a clínicas especializadas para filtrar o sangue e o faz três vezes por semana, sendo que cada seção dura cerca de cinco horas.
Nosso grupo há muitos anos planejava ir para Portugal e desfrutar da hospitalidade de uma das amigas, nascida em Lisboa. Não fosse um acordo bilateral entre o Brasil e Portugal, seria praticamente impossível ter a companhia dele em terra lusitanas. Confiantes, mas apreensivos, partimos no início do mês.
No mesmo ritmo que faz hemodiálise em BH, o fez em Portugal. Montamos nosso roteiro país adentro de forma a ter sempre horário em uma clínica agendada com muita antecedência. Nada podia dar errado. E não deu. Entrava às oito da manhã e na hora do almoço nos reencontrava satisfeito e refeito. Certamente esconde dificuldades, limitações e ansiedades que não somos capazes de imaginar. Mas, sem dúvida, aprendeu que cada dia cobra riscos que vale a pena correr, independente do que a vida possa oferecer.