
Fernando Morais/jornalista e escritor
Júlio Moreira
“Nós não cometemos crime. Estamos defendendo a honra do imperador.” A frase, dita por um integrante da Shindo Renmei conhecido como tokotai — executores designados pela seita para punir os chamados “corações sujos” — resume a ideologia que alimentou um dos episódios mais violentos e desconhecidos da história do Brasil.
Lançado em 2000, Corações Sujos revela a guerra secreta travada por imigrantes japoneses no Brasil que se recusavam a aceitar a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial e chegaram a matar compatriotas acusados de “trair” o imperador. Publicada pela Companhia das Letras, a obra é fruto de extensa investigação em arquivos brasileiros e japoneses, aliada a depoimentos de sobreviventes, e confirma a marca autoral de Fernando Morais, também responsável por sucessos como A Ilha, Olga, Chatô – O Rei do Brasil, Cem Quilos de Ouro, Os Últimos Soldados da Guerra Fria e Na Toca dos Leões.
Além de revisitar esse passado, Fernando Morais segue produzindo novos trabalhos de peso: está finalizando o segundo volume da biografia de Luiz Inácio Lula da Silva e já planeja escrever a biografia de Antônio Carlos Magalhães, o polêmico “Toninho Malvadeza”.
A seguir, em entrevista concedida ao Estado de Minas, o escritor fala sobre descobertas, surpresas e bastidores de Corações Sujos, além de refletir sobre sua trajetória como repórter e escritor.
O que mais o surpreendeu durante a pesquisa para Corações Sujos, especialmente nos arquivos do Japão e nos relatos de sobreviventes?
O que mais me surpreendeu, quando descobri a história que retrato no livro Corações Sujos, foi o fato de eu morar há 60 anos em São Paulo e ter amigos nisseis, com quem tenho uma relação muito boa, e que, assim como outros descendentes da comunidade japonesa, nunca tinham ouvido falar disso. Nem sequer alguma informação que pudesse, ainda que vagamente, dar a impressão de que isso tivesse acontecido. Então, quando soube disso, por casualidade, fui perguntar para meus amigos sanseis e nisseis, e eles também não sabiam. Dentro da colônia, muita gente não sabia.Vi um depoimento, por exemplo, da Fernanda Takai, cantora e compositora. Ela tinha um ancestral — acho que o avô — e só descobriu que ele era tokotai lendo meu livro. Passou a vida inteira sem saber que o avô tinha participado dessa guerra.Então, imagine a minha surpresa, tendo um convívio tão próximo com a comunidade japonesa aqui em São Paulo.
A história da Shindo Renmei ficou esquecida por décadas. Por que o senhor acredita que esse episódio foi silenciado na memória nacional?
Eu tenho a impressão de que o que levou aqueles que sabiam da história a escondê-la foi um sentimento parecido com a vergonha. Vergonha de um povo tão desenvolvido, tão preparado, que conseguiu sair das cinzas da guerra e se transformar em uma potência econômica e tecnológica, mas que, mesmo assim, teve uma parte significativa acreditando que o Japão havia vencido a Segunda Guerra Mundial. E logo os japoneses, que foram alvo de duas bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Relembrar isso poderia transmitir à opinião pública a impressão de que se tratava de um povo atrasado ou ignorante.
Acredito que essa tenha sido uma das razões para que a história permanecesse esquecida durante tanto tempo — tanto no Japão quanto aqui no Brasil.
O livro mostra um Brasil dividido entre vencedores e derrotados da Segunda Guerra. O senhor vê paralelos entre aquele cenário e o Brasil polarizado de hoje?
Não, eu não vejo um paralelo entre o que acontecia naquela época e o que acontece hoje no Brasil. O que havia ali era um sentimento de fundamentalismo profundo, arraigado em metade da colônia. Um fundamentalismo promovido pelo amor à divindade, que era o imperador. Eles acreditavam que o imperador não era um ser humano, mas sim uma divindade. Tanto que o choque provocado na população foi enorme quando Hirohito, pela primeira vez, gravou uma mensagem para ser ouvida pelo povo. Afinal de contas, se ele estava falando, era porque era um ser humano — e não uma divindade. Portanto, não há termos de comparação entre o que se passa no Brasil e o que o Japão viveu naquela época. Era uma visão fundamentalista, não encontro outra palavra: seja na figura divina do imperador, seja no amor à bandeira Hinomaru, considerada sagrada por eles.
Muitos leitores ficam perplexos com a radicalização dos imigrantes japoneses retratados no livro. Como o senhor lidou com a complexidade de narrar uma tragédia sem cair em estigmas ou simplificações?
Não estigmatizar um lado ou o outro. Sobretudo, não estigmatizar o lado dos tokotai, dos matadores, porque alguns eram pessoas preparadas. Os dirigentes eram oficiais do Exército Imperial. Tomei muito cuidado para não transmitir ao leitor a impressão de que se tratava de um bando de loucos — não era isso. Como já respondi na pergunta anterior, eles eram movidos por um sentimento fundamentalista de amor à figura divina do Imperador. É o mesmo fundamentalismo que leva ao surgimento dos kamikazes, pilotos que se lançavam com seus aviões contra navios e aeronaves aliados durante a Segunda Guerra. A proximidade é muito grande. Vejo também alguma analogia com o fundamentalismo ultra-radical muçulmano, como no atentado contra o jornal francês Charlie Hebdo, que havia publicado uma charge de Maomé. É um fundamentalismo semelhante ao que movia os tokotai da Shindo Renmei.
O senhor poderia descrever o ritual extremo que os tokotai impunham aos chamados “corações sujos”?
A morte era ritualística (pela seppuku). Eles levavam para o traidor — que chamavam de “coração sujo” — uma carta de suicídio feita por um calígrafo, não por qualquer um. Essa carta vinha pronta para o condenado assinar. Levavam também uma seppuku, faca própria para o suicídio, e a bandeira japonesa dobrada. O condenado tinha que assinar a carta, abrir o próprio ventre e, enquanto morria, colocar a bandeira dentro das próprias tripas. Caso se recusasse, eles o matavam a tiros e faziam eles mesmos o ritual no corpo. Encerrada a operação, iam até a delegacia mais próxima para se entregar, dizendo: “Nós não cometemos crime. Estamos defendendo a honra do imperador.”
Corações Sujos foi adaptado para o cinema. Como o senhor avalia essa transposição da sua obra para as telas? O filme conseguiu capturar a essência da história?
O filme é muito bom. Consegue, com uma delicadeza rara, misturar a violência e a brutalidade com um sentimento de amor. É uma história que se desenrola — sem dar spoiler ao leitor que ainda não assistiu — a partir de uma carta de amor, um flashback dessa carta escrita por uma mulher ligada a um dos envolvidos na trama. Vicente Amorim foi muito feliz ao juntar o lado afetivo, o lado emocional positivo, que é o amor, com a violência contida, o ódio contido, presentes nas incursões dos grupos que assassinavam seus próprios compatriotas. Acho que o filme captou a essência da história, que também pode ser vista como uma história de amor — de amor à divindade, de amor ao caráter sagrado da bandeira japonesa.
Ao longo da carreira, o senhor sempre se debruçou sobre temas ocultos ou mal contados da história do Brasil. Como escolhe os assuntos que vai investigar?
Considero que isso é um cacoete, um vício positivo que trago da minha profissão, a vida nas redações de jornal, onde, durante quase todo o tempo, fui repórter. Ocupei outros postos — fui pauteiro, chefe de reportagem, copidesque, editor —, mas o que sempre me seduziu foi ser repórter. Forçar a busca da essência do jornalismo, que é contar o que ninguém conhece. Sempre que me vejo diante de uma história desconhecida, ou que tenha aspectos pouco explorados, sinto a mesma motivação que me levou a escrever sobre a história de Olga Benário, viúva de Luiz Carlos Prestes. Era uma história conhecida por grande parte dos brasileiros, mas ninguém havia mergulhado tão fundo nela. Isso me move: ir atrás de temas pouco conhecidos, mal contados ou tratados com superficialidade, seja na história do Brasil ou de outras sociedades. Escrevi livros sobre os cubanos presos nos Estados Unidos (Os Últimos Soldados da Guerra Fria), escrevi sobre Olga, personagem essencialmente alemã, e, talvez, este seja o primeiro pré-requisito que me imponho ao decidir escrever um livro: o caráter inédito ou pouco conhecido da história. No fundo, essa é a essência do jornalismo. Afinal, o que é um jornal? É um veículo que conta para você coisas que, teoricamente — e, pateticamente —, você não saiba.
Qual foi o impacto pessoal e emocional de mergulhar num tema que envolve fanatismo, violência e identidade cultural?
O impacto foi muito grande. Eu não podia imaginar que pais, avós e bisavós de amigos meus — gente sofisticada, atualizada — pudessem ter se envolvido numa guerra de fanatismo, violência e fundamentalismo, em defesa disso que você mencionou: identidade cultural. Foi um impacto pessoal e emocional enorme. Quanto mais eu descobria um personagem novo, mais me encantava com a história. Acabei me envolvendo muito, embora seja uma história que, teoricamente, não tenha nada a ver comigo, com a minha vida, minha cultura ou minha trajetória. Mas apenas teoricamente.
O senhor acredita que ainda há muitos “corações sujos” no Brasil de hoje — pessoas presas a negações ideológicas e incapazes de aceitar a realidade?
Entre os mais idosos da comunidade japonesa, ainda é possível encontrar, aqui e ali, alguém que continua acreditando que o Japão venceu a Segunda Guerra Mundial. Lembro-me de certa vez, há vinte anos, estar conversando com o senhor Itaka, um tokotai, um dos sobreviventes e que está na capa do livro. Ele, na ocasião, era dono de uma loja de bicicletas em Marília. Estávamos frente a frente, cada um de um lado do balcão, eu com um notebook e uma câmera, gravando nossa entrevista. Ao final, perguntei:
— Passados 60 anos, o senhor acredita que quem venceu a guerra?
Ele fez uma pausa e devolveu a pergunta de forma curiosa:
— Qual é a marca do seu computador?
Respondi:
— Sony, japonesa.
— E a sua câmera? — ele continuou.
— Nikon, japonesa também — falei.
Ele sorriu e concluiu:
— Então, me diga você: quem acha que ganhou a guerra?