Júlio moreira

 

Na rendição que selou o fim da Segunda Guerra, o Japão viu ruir séculos de mito imperial. No Brasil, porém, a derrota incendiou a seita Shindo Renmei, que caçou e matou os chamados “corações sujos”. Na continuidade da série de cadernos especiais sobre os 80 anos do fim do conflito, o Estado de Minas publica hoje um panorama completo sobre o episódio – da rendição no Pacífico à guerra particular travada no Brasil – e entrevista com Fernando Morais, autor do livro “Corações Sujos”.

 

O dia em que a voz do
imperador foi ouvida

 

Na manhã de 15 de agosto de 1945, o Japão parou para ouvir a voz do imperador Hirohito. Pela primeira vez, a população escutava diretamente seu soberano, que, em uma gravação cuidadosamente elaborada — o célebre Jewel Voice Broadcast —, comunicava que o país aceitaria a Declaração de Potsdam, documento assinado em 26 de julho de 1945 por Estados Unidos, Reino Unido e China (com posterior adesão da União Soviética) que estabelecia os termos da rendição incondicional japonesa, incluindo o fim do militarismo, a ocupação aliada e a democratização do país.


A palavra “rendição” não foi pronunciada. Por orgulho e preservação da honra imperial, Hirohito falou em “suportar o insuportável” e encerrar as hostilidades. No pronunciamento, afirmou:
“Suportamos a insuportável situação e enfrentamos o intolerável para abrir o caminho para uma paz duradoura para todas as gerações vindouras.”


O anúncio encerrou oficialmente a Segunda Guerra Mundial e a participação japonesa, após quase quatro anos de guerra total.


Poucos dias depois, o general americano Douglas MacArthur — apelidado “Maca-san” pelos japoneses — encontrou-se com o imperador, numa imagem que se tornaria símbolo do novo equilíbrio de poder: o líder militar dos Estados Unidos, imponente, ao lado de um Hirohito contido, vestido de terno civil, em contraste com o uniforme de outrora. O Japão, devastado por bombardeios convencionais e pelos ataques nucleares de Hiroshima (6 de agosto) e Nagasaki (9 de agosto), além da ofensiva soviética na Manchúria (8 de agosto), não tinha mais meios de continuar resistindo.


No 2 de setembro de 1945, a rendição formal foi assinada no encouraçado USS Missouri, na Baía de Tóquio. Hirohito permaneceu no palácio imperial. Representaram o imperador, o ministro das Relações Exteriores, Mamoru Shigemitsu, e o chefe do Estado-Maior, Yoshijiro Umezu. Para o general Douglas MacArthur, comandante supremo das forças aliadas, a ausência de Hirohito era estratégica: manter sua autoridade simbólica, mas evitar exposição direta em um ato que marcava a perda de soberania nacional.


De Pearl Harbor às
derrotas no Pacífico

O caminho até esse desfecho havia começado anos antes. Em 7 de dezembro de 1941, o ataque-surpresa a Pearl Harbor levou os Estados Unidos a entrarem oficialmente na guerra. O Império Japonês conquistou rapidamente territórios no Pacífico e no Sudeste Asiático, registrando vitórias significativas nas Filipinas, Malásia e nas Índias Orientais Holandesas.


A virada começou em junho de 1942, na Batalha de Midway, quando quatro porta-aviões japoneses foram afundados pela Marinha americana. Seguiram-se derrotas sangrentas em Guadalcanal (1942/43), nas Filipinas (1944) e em Iwo Jima (fevereiro/março de 1945) — onde mais de 20 mil soldados japoneses morreram na tentativa de impedir o avanço americano. A queda dessa pequena ilha, estrategicamente vital, permitiu que os Estados Unidos montassem bases aéreas próximas ao território japonês. Em Okinawa (abril-junho de 1945), último grande campo de batalha, o Japão perdeu mais de 100 mil homens em combates que anteciparam a invasão final.


A rendição não significou o fim imediato das dificuldades. Sob ocupação americana, liderada por MacArthur, o país foi submetido a um programa radical de reformas. Uma das primeiras medidas carregadas de simbolismo foi a instalação do quartel-general aliado no próprio Palácio Imperial, gesto que muitos japoneses interpretaram como invasão de um espaço sagrado.


Em público, MacArthur declarou que o imperador não era mais um ser divino, mas “apenas um símbolo do Estado” — afirmação que chocou uma sociedade habituada à reverência absoluta ao trono. Documentos da ocupação também registram incentivos para que a população adotasse hábitos de vida ocidentais, como cortes de cabelo e vestimentas “à americana”, algo visto como afronta à identidade cultural tradicional.
Apesar disso, a manutenção de Hirohito no trono foi uma decisão estratégica dos Estados Unidos: preservava a unidade social e evitava que setores radicais do derrotado comando japonês incitassem resistência armada.


Em 1º de janeiro de 1946, Hirohito fez seu segundo grande pronunciamento: a chamada Declaração da Condição Humana. No discurso, afirmou:


“Os laços que nos unem como soberano e povo não dependem de mitos e lendas, e não se apoiam na falsa concepção de que o imperador é divino.”


Essa fala renunciou publicamente à sua condição divina e quebrou uma tradição que sustentava a monarquia japonesa havia séculos. Um episódio simbólico marcou essa nova era: o imperador, antes intocável, foi visto parado num sinal de trânsito vermelho em Tóquio, aguardando como qualquer cidadão comum.
Eco no Brasil


A reconstrução japonesa no pós-guerra se apoiou na modernização industrial, no alinhamento político com os Estados Unidos e no abandono de ambições militares. Mas os efeitos da rendição ecoaram além do arquipélago. No Brasil, onde vivia uma grande colônia japonesa, a aceitação do fim da guerra provocou um conflito interno feroz. Surgiu a seita Shindo Renmei, que passou a assassinar compatriotas acusados de trair o imperador ao admitir que o Japão havia perdido. 

 

Hirohito: da rendição ao fim do mito imperial

Discurso de rendição
Jewel Voice Broadcast, 15 de agosto de 1945

“Além disso, o inimigo começou a empregar uma nova e cruéissima bomba, cujo poder destrutivo é, de fato, incalculável, ceifando muitas vidas inocentes. Se continuássemos a lutar, não apenas resultaria no colapso final e no aniquilamento da nação japonesa, como também levaria à extinção total da civilização humana.”

“A situação da guerra não se desenvolveu necessariamente para a vantagem do Japão.”


Declaração da Humanidade
Ningen Sengen, 1º de janeiro de 1946

“Os laços entre Nós e Nosso povo sempre se sustentaram na confiança e no afeto mútuos. Eles não dependem apenas de lendas e mitos.”

“Não estão fundamentados na falsa concepção de que o Imperador seja divino.”

 

Imposições e proibições 

Reforma política: abolição das Forças Armadas; nova Constituição pacifista (1947); instauração de regime democrático.

Transformações sociais: reforma agrária; sufrágio feminino; democratização do sistema educacional e restrição à exaltação militar.

Mudança simbólica: renúncia à condição divina do imperador; redução do trono ao papel de “símbolo do Estado”; colaboração com o Tribunal Militar Internacional.

 

 

Imperador Hirohito

 

De divino a símbolo do povo

 

O 124º imperador do Japão atravessou uma guerra mundial, viu o país derrotado e soube se reinventar para manter o trono em uma nova era democrática

 

Nascido em 29 de abril de 1901, em Tóquio, Hirohito era filho do príncipe herdeiro Yoshihito (posteriormente imperador Taisho) e da imperatriz Teimei. Educado sob rígida disciplina, recebeu formação militar e acadêmica que o preparou para o papel imperial. Em 1921, realizou uma longa viagem pela Europa, a primeira de um príncipe herdeiro japonês, experiência que ampliou sua visão política e diplomática.
Assumiu o trono em 25 de dezembro de 1926, tornando-se o imperador de um Japão em rápida modernização, mas também marcado por crescente militarismo e expansão territorial.


Silêncio rompido

Durante a Segunda Guerra Mundial, Hirohito manteve-se distante da comunicação direta com a população. Seu papel e grau de influência nas decisões militares ainda são alvo de debates entre historiadores. O silêncio foi rompido apenas em 15 de agosto de 1945, no pronunciamento que ficou conhecido como Jewel Voice Broadcast. Em linguagem arcaica, disse que o Japão deveria “suportar o insuportável para preservar a paz do país e do mundo”. Embora não tenha usado a palavra “rendição”, a mensagem deixou claro que o país aceitava os termos dos Aliados.


Poucas semanas depois, o Japão formalizou o fim da guerra em cerimônia oficial com a presença de representantes militares e diplomáticos. Hirohito não esteve presente, preservando-se no papel de símbolo da nação em um momento delicado de transição política. Para os Aliados, manter essa distância física era uma forma de proteger a autoridade imperial, evitando que fosse diretamente associada ao ato de perda d soberania.


Após a rendição, Hirohito foi mantido no trono. Segundo o historiador John W. Dower, “a manutenção do imperador foi essencial para quebrar as estruturas autoritárias sem implodir o tecido social”. Sob supervisão do comandante supremo das Forças Aliadas, MacArthur, reformas profundas transformaram o Japão: nova constituição, sufrágio universal, liberdade de imprensa e reforma agrária.


A partir de 1946, a administração ocupante promoveu uma mudança deliberada na imagem de Hirohito. De soberano divino, ele se tornou o “imperador do povo”, aparecendo em visitas públicas, apertando mãos e caminhando entre cidadãos comuns. Essa adaptação permitiu que o Japão mantivesse seu monarca como símbolo nacional, enquanto consolidava um Estado moderno e pacífico.


O imperador Hirohito reinou até sua morte, em 7 de janeiro de 1989, tornando-se o monarca com o mais longo reinado da história japonesa moderna — 62 anos. Seu período no trono abrangeu a ascensão militarista, a catástrofe da guerra e a reconstrução democrática. O legado de Hirohito permanece complexo: um líder associado a um passado belicoso, mas também a um dos períodos de maior estabilidade e prosperidade do Japão contemporâneo. 

 

DOUGLAS MAcARTHUR

 

O general da vitória e da ocupação

 

Comandante supremo das Forças Aliadas no Pacífico foi o rosto da rendição japonesa e o arquiteto da reconstrução do Japão no pós-guerra

 

Douglas MacArthur nasceu em 26 de janeiro de 1880, em Little Rock, Arkansas, filho de um herói da Guerra Civil americana. Formado pela Academia Militar de West Point, destacou-se como aluno brilhante e oficial ambicioso. Serviu nas Filipinas, na Primeira Guerra Mundial, e construiu uma reputação de estrategista ousado e carismático. Na década de 1930, comandou o Exército dos EUA e atuou como conselheiro militar nas Filipinas.


Quando o Japão atacou Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941, MacArthur já comandava as forças americanas nas Filipinas. Após a queda do arquipélago, fez a célebre promessa: “Eu voltarei’’. Cumpriu-a em 1944, liderando a retomada do território. Seu comando no Pacífico Sul-Oeste foi marcado por estratégias de “salto de ilhas”, abrindo caminho para a invasão do arquipélago japonês.


Com o anúncio da aceitação da Declaração de Potsdam pelo Japão em 15 de agosto de 1945, MacArthur foi nomeado comandante supremo das forças Aliadas, responsável pela rendição e ocupação. No 2 de setembro de 1945, na Baía de Tóquio, presidiu a cerimônia a bordo do USS Missouri, um dos mais modernos e poderosos couraçados da frota americana. Usou várias canetas para assinar o documento, entregando-as como lembrança a líderes militares e políticos aliados.


Seu discurso foi breve, destacando que o objetivo era “não meramente punir, mas construir um mundo de liberdade e justiça”.


Ao contrário do que muitos esperavam, MacArthur decidiu manter o imperador Hirohito no trono. Considerava que isso facilitaria a aceitação das reformas e evitaria instabilidade social. O famoso encontro entre os dois, em 27 de setembro de 1945, selou a nova relação de poder: um general estrangeiro com autoridade suprema e um imperador reduzido a figura simbólica.


Como comandante supremo das Forças Aliadas, MacArthur supervisionou a elaboração da nova constituição japonesa (promulgada em 1947), que instituiu democracia parlamentar, sufrágio universal e a renúncia à guerra. Também conduziu reformas econômicas e sociais, dissolveu os conglomerados industriais e incentivou liberdades civis. Sua administração moldou o Japão moderno.


Últimos anos e legado

MacArthur deixou o Japão em 1951, após desentendimentos com o presidente Harry Truman durante a Guerra da Coreia, quando defendeu ampliar o conflito contra a China. Reformou-se do exército, mas manteve popularidade como herói nacional nos EUA. Morreu em 5 de abril de 1964, em Washington, aos 84 anos. Sua imagem permanece ligada à vitória no Pacífico e à reconstrução japonesa, sendo lembrado como líder pragmático e estrategista de impacto global. 

 

 

O soldado que não se rendeu

 

Trinta anos na selva, Onoda só deixou a guerra após ordem de seu antigo comandante

 

Você consegue imaginar um soldado que só soube do fim da Segunda Guerra quase 30 anos depois?
Pois foi exatamente o que aconteceu com Hiroo Onoda. Oficial de inteligência do Exército Imperial Japonês, ele desembarcou na ilha de Lubang, nas Filipinas, em 26 de dezembro de 1944. Tinha 22 anos, um rifle Arisaka e uma missão clara: resistir à invasão americana e jamais se render, custasse o que custasse.


Quando as posições japonesas caíram, Onoda e três companheiros se embrenharam na mata. Para eles, o conflito continuava. A guerra terminou oficialmente em agosto de 1945, após a devastação provocada pelas bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, que mataram mais de 200 mil pessoas, e com a assinatura da rendição japonesa na Baía de Tóquio. Mas Onoda não acreditou. “Para mim, eram truques do inimigo”, diria anos depois.


Na selva, a rotina era de vigilância constante. Ele se movia de um ponto a outro sempre que percebia sinais de perigo, sobrevivia com alimentos furtados de vilarejos, caçava vacas e cultivava uma disciplina quase militar sobre a própria saúde. Chegou a se envolver em tiroteios com policiais e moradores, episódios que resultaram na morte de cerca de 30 civis. Onoda sempre descreveu essas ações como parte das “táticas de guerrilha” que jurara cumprir.


O isolamento só terminou em fevereiro de 1974, quando o aventureiro japonês Norio Suzuki decidiu procurá-lo. Após quatro dias na mata, encontrou o soldado. Tentou convencê-lo a voltar, mas ouviu um “não” categórico: Onoda só deixaria o posto se recebesse ordens diretas de seu antigo superior, o major Yoshimi Taniguchi.


Suzuki voltou ao Japão, apresentou fotos do encontro e acionou o governo. No mês seguinte, retornou a Lubang com o próprio Taniguchi. Montaram acampamento e aguardaram. Quando Onoda apareceu, o major, surpreso, disse: “É você mesmo, Onoda? Estarei com você em um minuto!”. Vestiu o uniforme, saiu da barraca e leu as ordens oficiais: a guerra havia acabado, ele estava dispensado. Era 9 de março de 1974, a nove dias de seu 51º aniversário.


O retorno ao Japão foi triunfal. No mesmo ano, Onoda lançou um livro narrando a vida na selva, mas omitindo as mortes de civis. Nas Filipinas, a imprensa expôs esse lado da história, mas o presidente à época concedeu perdão total, num gesto que gerou aplausos e críticas.


Pouco depois, Onoda decidiu recomeçar a vida no Brasil, onde já vivia seu irmão. Foi recebido com festa em São Paulo e no Rio de Janeiro, concedendo entrevistas que despertaram curiosidade. “Mantive a saúde examinando diariamente minhas fezes e urina. Se via algo estranho, mudava a alimentação”, contou. Instalou-se primeiro em Ribeirão Pires e, mais tarde, em Terenos, no Mato Grosso do Sul, onde administrou uma fazenda de gado por 40 anos.


No Brasil, recebeu honrarias como a medalha de mérito Santos Dumont da Força Aérea e o título de cidadão sul-matogrossense. Tornou-se uma figura respeitada, mas sempre discreta, participando de eventos pontuais e preservando o estilo de vida regrado que o acompanhara na selva.


Já no fim da vida, retornou ao Japão. Morreu em Tóquio, em 16 de janeiro de 2014, aos 91 anos, vítima de pneumonia. Sua trajetória, para alguns, é um exemplo extremo de lealdade e disciplina militar; para outros, um símbolo de como uma missão pode aprisionar alguém muito além do fim oficial de uma guerra. 

 

o último kamikaze

“Terminamos o treinamento e recebemos um pedaço de papel com três opções: ser voluntário por forte desejo, ser voluntário ou recusar. Mas só havia uma escolha.” Aos 21 anos, Hisao Horiyama aceitou morrer pelo imperador como piloto kamikaze. “Mesmo que morrêssemos, era uma causa nobre. Recebemos ordem de não voltar.” Treinado para suprimir emoções, viu amigos partirem para missões sem retorno. Em 15 de agosto de 1945, a rendição do Japão o poupou. “Sou grato ao imperador por ter parado a guerra. Sobreviver me deu a chance de lembrar os que se foram e contar sua história.”

 

 

Japoneses eram mortos por
admitir a derrota do Japão

 

No Brasil, após a Segunda Guerra Mundial, integrantes da Shindo Renmei perseguiram e executaram compatriotas, chamados de ‘corações sujos’, por reconhecerem a rendição japonesa

 

O 18 de junho de 1908 marcou o início de uma nova história no Brasil: o desembarque, no porto de Santos, do navio Kasato Maru, trazendo 165 famílias – 786 japoneses – para trabalhar na lavoura de café. O choque cultural foi imediato: barreira de idioma, dificuldades econômicas e até a alimentação brasileira, vista como gordurosa e salgada, provocando desconfortos nos recém-chegados. A coesão da comunidade se apoiava em tradições e no yamatodamashii – o “espírito japonês”, conceito que une lealdade, honra e perseverança.


Com a Segunda Guerra, a vida desses imigrantes se estreitou ainda mais. Em 29 de janeiro de 1942, Getúlio Vargas rompeu relações com Alemanha, Itália e Japão. Seguiram-se fechamento de escolas japonesas, proibição de falar japonês em público, censura e apreensão de jornais e livros, e a proibição do ensino do yamatodamashii às crianças. Pelo “Diário Oficial” de 11 de março de 1942, eventuais prejuízos impostos ao Brasil pelas nações do Eixo seriam cobertos por depósitos bancários de imigrantes desses países. Na época, ser japonês no Brasil passou a significar viver sob vigilância.


Quando chegou a notícia da rendição do Japão, em agosto de 1945, a colônia – então com mais de 200 mil imigrantes – mergulhou em um conflito interno sem precedentes. De um lado, os kachigumi (vitoristas), convictos de que a derrota era propaganda inimiga e que o imperador jamais se curvaria. Do outro, os makegumi (derrotistas), que aceitavam o fim da guerra e tentavam seguir a vida no novo país.


Foi nesse ambiente que nasceu a Shindo Renmei (Liga do Caminho dos Súditos), organização clandestina formada por ex-militares e líderes comunitários que assassinava compatriotas acusados de trair o imperador, por admitirem a derrota japonesa. Entre janeiro de 1946 e fevereiro de 1947, a seita executou 23 pessoas e feriu cerca de 150. Os assassinatos eram planejados, com ordens transmitidas de forma hierárquica e executadas pelos tokkotai (matadores), grupos especiais de ataque.


No Japão, o imperador Hiroíto anunciou, em 15 de agosto de 1945, a aceitação da Declaração de Potsdam, sem usar a palavra “rendição”, mas deixando claro o fim da guerra. Meses depois, em 1º de janeiro de 1946, veio a mensagem que mais abalou os imigrantes: a negação pública de sua condição divina, rompendo séculos de crença na descendência da deusa do Sol. Essas declarações ampliaram a tensão na colônia japonesa no Brasil e serviram como pano de fundo para os conflitos que iriam explodir.


A faísca da guerra
particular

A tensão na colônia japonesa no Brasil explodiu no episódio narrado por Fernando Morais no livro “Corações sujos”. No Bairro Coim, em Tupã (SP), o lavrador Shigueo Koketsu comemorava o Ano-Novo do Japão com familiares e amigos, quando um vizinho brasileiro invadiu a festa e gritou:


“Olha aqui, cambada de bodes: acabou de dar no rádio que o rei de vocês não é Deus nem merda nenhuma! É gente que nem eu, caga e mija que nem eu. O Japão perdeu a guerra, vocês agora vão ver o que é botar canga em quem.”


O vizinho denunciou o hasteamento da Hinomaru. O cabo Edmundo Vieira Sá, da Força Pública, chegou com soldados, prendeu os presentes, apreendeu livros e objetos religiosos e, segundo testemunhas, limpou as botas na bandeira antes de arrancá-la do mastro. A reação foi imediata:


— “Não toque na bandeira japonesa! A Hinomaru é sagrada, não pode ser desonrada!”


O gesto foi visto como insulto supremo à honra do Japão e inflamou sete kachigumi que a Shindo Renmei passaria a venerar como “heróis”: Isamu Yamamoto, Shoji Niide, Yoshio Nishimura, Shigueo Sugano, Shoji Tamura, Masayuki Kondo e Shoji Kurokawa. Eles chegaram a planejar a execução do cabo Edmundo Vieira Sá, mas não concretizaram o ataque.


Após esse episódio, embora já existisse, a Shindo Renmei se reorganizou e consolidou seu comando sob a liderança de Junji Kikawa, ex-oficial do Exército Imperial. Ele presidia um conselho secreto responsável por elaborar “listas negras” e ordenar execuções, com ordens transmitidas por mensageiros de confiança. Auxiliado por veteranos de guerra e comerciantes influentes, Kikawa estruturou uma rede clandestina com rígida disciplina, capaz de espalhar medo, impor silêncio e manter a lealdade absoluta ao imperador — mesmo à custa de sangue.


A rede clandestina

A Shindo Renmei operava com tokkotai e rádios clandestinas como a “Rádio Bastos”, que despejavam boatos de vitória: Harry Truman teria fugido para o Canadá; Churchill, desaparecido; milhões de soviéticos, rendidos; navios e aviões dos EUA, capturados; e até a iminente chegada da esquadra japonesa ao Rio de Janeiro. Além das transmissões, a seita chegou a produzir uma edição falsificada da revista Life, ilustrada com fotos manipuladas para mostrar a suposta rendição dos Estados Unidos, reforçando a narrativa de que o Japão permanecia invicto.


Entre as vítimas esteve o agricultor paulista Ichiro Yamanaka, executado por dizer publicamente que o Japão havia perdido. Em 2018, sua filha, Kiyoko Yamanaka, relatou à BBC a noite em que homens armados invadiram a casa, atiraram no pai e deixaram a família mergulhada em silêncio e medo por décadas — um trauma que explicita o alcance do terror da seita dentro da colônia.


O fim da seita

A repressão do DOPS prendeu mais de 30 integrantes que confessaram crimes, denunciou 381 pessoas e determinou a deportação de 80 para o Japão — medida assinada por Eurico Gaspar Dutra, mas jamais executada. Muitos cumpriram cerca de dez anos de prisão e foram libertados em 1956, quando Juscelino Kubitschek comutou as penas.


O episódio da bandeira em Tupã ficou como o estopim simbólico da mais sangrenta disputa interna da comunidade japonesa no Brasil — uma guerra sem trincheiras, movida por honra, fanatismo e desinformação. 

 

Como o Japão se tornou a uma
potência após a segunda guerra

 

Unificado após 1945, o país transformou destruição em crescimento com apoio dos EUA

 

Em 2 de setembro de 1945, a rendição do Japão a bordo do USS Missouri, na Baía de Tóquio, marcou o fim da Segunda Guerra Mundial e o início de um período de sete anos de ocupação americana. Ao contrário da Alemanha, que foi dividida entre as potências aliadas, o Japão permaneceu unificado. A decisão teve razões geopolíticas claras: Washington temia que uma fragmentação facilitasse a expansão soviética no Pacífico, em plena Guerra Fria nascente.


O país, porém, estava devastado. Cerca de 80% de suas indústrias haviam sido destruídas, a infraestrutura estava em ruínas e a população enfrentava fome e desemprego. Parecia ter evaporado o progresso acumulado desde a Restauração Meiji, em 1868.Estratégia dos Estados Unidos


O general Douglas MacArthur, nomeado Comandante Supremo das Forças de Ocupação, liderou um programa ambicioso para reconstruir o Japão e transformá-lo em uma democracia pacífica. Em 1947, uma nova Constituição — a chamada “Constituição MacArthur” — transferiu a soberania ao povo, garantiu direitos iguais às mulheres, instituiu liberdades civis e, no artigo 9, proibiu a manutenção de forças armadas.


A desmilitarização liberou recursos para investimentos produtivos. Reformas agrárias redistribuíram terras a pequenos agricultores, sindicatos ganharam espaço legal e os antigos conglomerados industriais, os zaibatsu, foram parcialmente desmembrados. Os EUA também abriram seu mercado às exportações japonesas, tolerando práticas comerciais protecionistas, e transferiram tecnologia.


A Guerra da Coreia (1950–1953) funcionou como catalisador: as indústrias japonesas forneceram suprimentos e equipamentos para as tropas americanas, reativando rapidamente a capacidade produtiva.


Além da ajuda externa, o próprio Japão adotou um intervencionismo eficiente. O Estado direcionou investimentos a setores estratégicos, incentivou pesquisa e inovação e consolidou um sistema educacional inclusivo e de alta qualidade. A educação primária universal, a expansão de universidades e centros de pesquisa formaram uma força de trabalho altamente qualificada — um diferencial competitivo crucial.


A cultura de disciplina, cooperação e lealdade corporativa ajudou a manter relações estáveis entre trabalhadores e empresas. Esse alinhamento permitiu a aplicação de técnicas industriais eficientes e a rápida absorção de tecnologias estrangeiras, adaptadas e aperfeiçoadas internamente.


Milagre econômico

O resultado foi um crescimento sem precedentes. Entre 1945 e 1958, o PIB japonês cresceu em média 7,1% ao ano. Entre 1959 e 1970, a taxa subiu para 9,5%. Em 1965, o PIB era de US$ 91 bilhões; em 1980, ultrapassava US$ 1 trilhão. O país desenvolveu uma poderosa indústria automotiva e eletrônica, exportando marcas como Toyota, Honda, Sony e Nintendo para o mundo.


A infraestrutura também avançou: rodovias modernas, trens-bala, portos e redes de metrô tornaram a economia mais eficiente e integrada. Ao final da década de 1970, o Japão já era a terceira maior economia do planeta, posição que manteria por décadas.


O alinhamento entre o interesse estratégico dos EUA e o esforço interno japonês moldou uma trajetória única no pós-guerra. A ocupação evitou a divisão territorial, reintegrou o país à economia global e criou bases sólidas para o desenvolvimento.


Cenário atual

Hoje, segundo o Banco Mundial, o PIB nominal japonês é de cerca de US$ 4,03 trilhões (2024), enquanto a World Economics estima US$ 4,196 trilhões, com projeção de US$ 4,242 trilhões em 2025. O país ocupa atualmente a 5.ª posição entre as maiores economias do mundo, atrás de Estados Unidos, China, Alemanha e Índia (FMI, 2025).


O crescimento real do PIB foi de 1,5% em 2023 e 0,8% em 2024, com previsão de 0,6% a 0,7% em 2025. No primeiro trimestre deste ano, houve uma contração anualizada de 0,7% (-0,2% frente ao trimestre anterior), segundo o Wall Street Journal. Apesar da desaceleração, o Japão continua sendo um dos polos industriais e tecnológicos mais relevantes do planeta, sustentando influência global e servindo de exemplo de reconstrução nacional.