UM SONHO REAL QUE COMPLETA 20 ANOS
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Siga noNeste ano, o Sr. completa 20 anos como desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, tendo ingressado na magistratura há 37 anos, em 1988. De menino de origem humilde, que teve sua infância numa casinha simples na zona rural de São Gotardo, à mais alta corte do estado. Como foi essa caminhada que o Sr. intitula “Um sonho real” em livro que escreveu sobre sua vida?
Foi uma caminhada tranquila, como ocorria, à época, com a maioria dos que nasciam e cresciam nas zonas rurais das pequenas cidades do interior do estado. Nos tempos de minha primeira infância, ou até poucos anos mais, ainda residiam muitas famílias na região em que nasci, mas, ante o êxodo rural ocorrido naquele período, à medida que os anos se passavam, todos foram se mudando para São Gotardo, para as grandes cidades do Triângulo Mineiro e mesmo para a capital do estado, como, após alguns anos, no início de 1980, foi o meu caso. Na capital, cursei direito e, nomeado juiz, em 1988, voltei para a minha região, tendo atuado por algum tempo em minha cidade natal, como juiz substituto. Quanto ao opúsculo, o título foi atribuído pela Câmara Municipal da minha querida cidade natal, que decidiu publicar o pequeno pronunciamento que ali fiz quando recebi uma honrosa homenagem dos representantes do povo sangotardense.
O Sr. sempre foi grande adepto da leitura, a ponto de, quando garoto, caminhar lendo livros pelos vários quilômetros diários que percorria pelas estradas de terra de sua São Gotardo, para ir à escola. Qual a importância da leitura para sua vida e sua carreira?
O hábito da leitura, que adquiri pelo gosto e pelas circunstâncias, foi – e continua sendo – crucial em minha vida. Pelas circunstâncias porque, residindo na região rural, já quase sem vizinhos, sem televisão em casa, visto que nem sequer energia elétrica tínhamos, busquei refúgio nos livros e, como somente tinha um – “As aventuras de Pinóquio” –, a biblioteca pública de São Gotardo foi minha salvação. De fato, gostava muito de ler e, como não dispunha do tempo que desejava, aproveitava também os momentos em que estava caminhando, para isso. E foi desse hábito que nasceu em mim o desejo de me dedicar a outra atividade que não fosse o trabalho braçal, embora esse também seja um trabalho nobre, do qual todos precisamos. Foi também o hábito da leitura que me proporcionou o conhecimento necessário ao exercício das funções de magistrado.
A juventude de hoje, muito fixada nas redes sociais e com pleno acesso a Inteligência Artificial, lê pouco. Como Sr. enxerga esse problema? Isso afeta, no campo do direito, a formação dos advogados, magistrados e membros do Ministério Público?
O gosto pela leitura é, realmente, requisito imprescindível aos operadores do direito, em qualquer função, seja advogado, magistrado, membro do Ministério Público, procurador etc. Não se concebe um bom profissional da área jurídica que não goste de ler, ou melhor, que não leia muito. As redes sociais, a inteligência artificial, a informática, em geral, são criações muito recentes, de modo que penso que nem mesmo os estudiosos da matéria sabem as suas consequências para a vida de todos. À primeira vista, parece que serão nefastas, mas o homem tem grande capacidade de adaptação e nem tudo é previsível, de modo que somente o tempo nos dirá – ou dirá às futuras gerações – as reais consequências. É possível que, passada esta fase inicial, de êxtase, as pessoas voltem à reflexão. Sou otimista e penso que o “princípio da ordem espontânea” poderá levar a um bom encaminhamento.
O Sr. diz em seu livro, “Um sonho real”, que para vencer é necessário muito trabalho, e faz questão de manter em seu gabinete um belo quadro com uma pintura da casa em que foi criado na zona rural de São Gotardo. O que essa imagem representa para o Sr.? Qual o conselho o Sr. dá para aqueles que estão iniciando na carreira jurídica, num país que tem mais de 1,4 milhão de advogados?
O quadro da fotografia da casa onde nasci, bem como da paisagem que a circunda, tem profundo significado para mim. Sempre me traz à memória as minhas origens, as minhas reflexões de quando, adolescente, já bem tarde da noite, voltava a pé para casa após a aula, meus pensamentos de então quanto à incógnita do meu futuro. Traz-me à memória os pensamentos das noites chuvosas e sem lua – em que eu fazia questão de não usar guarda-chuva –, os pensamentos das noites sem lua, mas plenas de estrelas, os pensamentos das noites de céu estrelado e lua cheia. E foi nesses pensamentos, de todas essas ocasiões, que decidi me empenhar para alcançar uma profissão que me fosse mais rendosa, não mais digna que a de lavrador. Penso que refletir sobre as origens, sobre a caminhada, é muito importante, de modo que acredito que é um privilégio ter na maturidade a possibilidade de rever o local do nascimento. Talvez, como diria Bentinho em Dom Casmurro, de alguma forma atar as pontas da vida, ainda que, no meu caso, somente olhando o quadro e visitando o local algumas vezes por ano. Por fim, o conselho que poderia passar tanto aos estudantes de direito quanto aos já iniciantes da carreira jurídica é, primeiro, que sejam corretos e éticos e, segundo, que leiam muito, estudem muito, tenham resiliência e persistam, pois é a estes que o Universo sempre recompensa com o sucesso. São esses que terão a glória de ver o céu estrelado, de lua cheia e o raiar do sol no dia seguinte.