A energia dos mineiros
compartilhe
Siga noA Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), com 73 anos de existência, sempre foi um orgulho para os mineiros. Nessa entrevista exclusiva, após cinco anos à frente da maior empresa de economia mista do Estado, o presidente da Cemig, Reynaldo Passanezi, fala de sua carreira, de sua experiência, do protagonismo da empresa no setor elétrico brasileiro, de sua privatização ou federalização e de temas importantes do setor.
O Sr. é presidente da Cemig desde 2020. Qual foi sua trajetória a ponto de lhe credenciar a presidir a mais importante empresa de economia mista do Estado?
Minha carreira soma mais de 30 anos de experiência em gestão, finanças e setor elétrico. No governo de São Paulo, atuei no Programa Estadual de Desestatização, participando de privatizações acima de US$ 15 bilhões. Depois, no BBVA, fui CEO e diretor de Corporate & Investment Banking, conduzindo operações de fusões e aquisições superiores a US$ 5 bilhões. Em 2013, assumi a presidência da ISA Energia Brasil, liderando um processo de turnaround que multiplicou por seis o valor de mercado da companhia. Desde 2020, à frente da Cemig, implementei um choque de gestão, com redução de dívidas, aumento da eficiência operacional e aprovação e execução do maior plano de investimentos da história. Na área acadêmica, sou doutor em Economia pela USP, mestre em Economia pela Unicamp e tenho formação executiva na FGV e em Stanford.
É correto afirmar que a Cemig já teve posição mais destacada entre as empresas de energia do país? A que o Sr. atribui essa perda de destaque? No seu ponto de vista, houve investimentos errados ou gestão deficiente?
Esse era o cenário que a nova gestão encontrou a Cemig, em 2019. Hoje, a realidade é completamente diferente. A Cemig retomou seu protagonismo no setor elétrico brasileiro, tem o maior plano de investimento e os melhores resultados financeiros de sua história, e é reconhecida pelo mercado e seus clientes. Quando a nova gestão assumiu, a Cemig estava caminhando para a inviabilidade financeira. Ao longo de quase dez anos, a empresa perdeu competitividade e protagonismo. E isso aconteceu por dois motivos principais: decisões equivocadas de investimento e falhas graves de gestão. Naquele período, a Cemig direcionou bilhões de reais para participações minoritárias em negócios fora do Estado, muitas vezes em setores que não faziam parte do core business. Eram investimentos de alto risco, sem controle acionário, que acabaram gerando enormes prejuízos. Ao mesmo tempo, Minas Gerais, que deveria ser a prioridade, recebia investimentos anuais inferiores à própria depreciação dos ativos. Para completar, a empresa perdeu concessões de usinas hidrelétricas muito importantes, que representavam 62% da capacidade de geração de energia à época. Quando assumimos a gestão, nosso primeiro passo foi corrigir essa rota. Reduzimos despesas, melhoramos a eficiência e as perdas técnicas e comerciais e, principalmente, implementamos uma política rigorosa de desinvestimentos. Saímos de negócios ruins, reduzimos participações societárias e eliminamos riscos bilionários. Com isso, recuperamos mais de R$ 12 bilhões em caixa e direcionamos os recursos para onde realmente importa: Minas Gerais. Voltamos a investir em geração, ampliamos a rede de distribuição, já entregamos mais de 130 novas subestações e estamos preparados para liderar a transição energética com uma matriz 100% renovável. Financeiramente, alcançamos o AAA em duas agências de rating, e batemos recordes de EBITDA, lucro líquido e valor de mercado. Ouso dizer que essa gestão tem feito a maior transformação da história da Companhia. Hoje, a Cemig é sólida, eficiente e voltou a ser motivo de orgulho para Minas e para o Brasil.
Muito se fala na privatização da Cemig, bandeira que o próprio acionista principal da empresa, o Estado de Minas Gerais, em sua atual administração, sempre se mostrou simpático e até mesmo em sua federalização. A quantas anda estes dois movimentos? Acha que é possível atingi-los ainda nesse governo?
Esse é um tema que está em discussão na Assembleia Legislativa de Minas, a partir de propostas do Governo do Estado, na qualidade de controlador da companhia. Acredito muito na interlocução entre os dois poderes, que saberão escolher o melhor caminho para preparar a Cemig para os desafios do novo mercado. O que está em debate não é simplesmente privatização ou federalização, mas sim a transformação da Cemig em uma empresa moderna, capaz de competir em um setor que será totalmente aberto até 2027. Hoje, 92% da geração e 87% da distribuição no Brasil já são privadas. A Cemig é a última grande estatal do setor, e isso traz limitações estruturais que afetam nossa agilidade e competitividade. Com a abertura total do mercado, todos os consumidores poderão escolher seu fornecedor, como já acontece com telefonia e internet. Nesse cenário, uma estatal com processos licitatórios lentos, não terá a mesma velocidade que os grandes players privados, que contratam em dias ou semanas. Essa diferença compromete inovação, qualidade e capacidade de investimento. Se nada for feito, corremos o risco de ver as receitas caírem e a Cemig perder relevância no setor elétrico. Por isso, a proposta de modernização é clara: transformar a Cemig em uma corporação mais ágil, competitiva e preparada para crescer, mantendo sua essência mineira e garantindo que continue gerando empregos e apoiando o desenvolvimento do Estado. Na corporação não há um controlador, mas o modelo prevê que o Estado mantenha a Golden Share, e siga como acionista de referência, assegurando o poder de veto em decisões estratégicas. Além disso, traz benefícios como acesso a capital mais barato, valorização imediata das ações e compromisso com investimentos acima da depreciação da rede. O papel da atual gestão da Cemig nesse processo é contribuir com informações técnicas e estratégicas, para modernizar e proteger o futuro da empresa e do patrimônio dos mineiros.
A federalização da empresa não seria a antítese da privatização, ou seja, tornaria a empresa, por exemplo, um “cabide de empregos” do governo federal? Isto não seria um retrocesso para a eficiência da empresa?
Esse é um assunto da Assembleia Legislativa e do controlador de Cemig, que é o Governo do Estado. Como presidente da Companhia, eu preciso destacar que se ela não se modernizar pode não conseguir competir no mercado de energia, com consequente perda de valor e de mercado e do valor do patrimônio dos mineiros.
Qual foco principal da Cemig hoje e quais os mais importantes projetos vêm desenvolvendo, em Minas, nas áreas de geração e transmissão?
O foco da Cemig hoje está no cliente. Nosso objetivo é melhorar os serviços aos mineiros e impulsionar o desenvolvimento econômico e social de Minas. Estamos executando o maior plano de investimentos da história: R$ 59 bilhões até 2029, priorizando distribuição, geração e transmissão. Já entregamos 138 novas subestações desde 2019 e chegaremos a 200 até 2027, ampliando em 50% o que foi feito em 70 anos. Retomamos investimentos em geração e, após 20 anos, inauguramos duas usinas fotovoltaicas. Na transmissão, vencemos um leilão da Aneel após 22 anos. Esses projetos mostram que a Cemig voltou a recuperar seu papel de indutora do desenvolvimento do Estado de Minas.
O governo brasileiro anunciou recentemente a retomada e o planejamento da construção de usinas hidrelétricas, sobretudo pela capacidade de complementação dessas usinas em relação às fontes intermitentes (solar e eólica) e pela redução da necessidade de investimentos em grandes linhas de transmissão. Dada a vocação da Cemig para a implantação desse tipo de empreendimento, qual será a posição da companhia diante dessa iniciativa do governo federal?
A Cemig possui uma trajetória consolidada nesse campo desde a implantação de usinas que regulam importantes rios nacionais. Entre elas se destacam Três Marias, no rio São Francisco, Emborcação, no rio Paranaíba, e Nova Ponte, no rio Araguari, que ao longo das décadas contribuíram de forma decisiva para a segurança energética do país. A Cemig vê com bons olhos a sinalização para a retomada do planejamento de novos empreendimentos hidrelétricos, o que reforça o papel central dessa fonte na matriz elétrica brasileira. O papel de provedor de garantia firme tem um valor diferencial o qual precisa ser devidamente reconhecido e remunerado. Nesse contexto, acompanhamos de forma criteriosa as oportunidades que possam surgir, sempre em consonância com os marcos regulatórios e com a estratégia de expansão eficiente do setor. A companhia mantém o compromisso de ampliar sua atuação em fontes renováveis, priorizando a hidráulica, a eólica e a solar.
A digitalização das redes de distribuição é apontada como um dos pilares da transição energética. Quais as iniciativas da Cemig quanto ao tema? Como garantir que também o consumidor se beneficie dessa onda digital?
A Cemig avança em sua transformação digital e concluirá, até 2026, a implementação do ADMS, uma das plataformas mais modernas de gestão de redes do mundo, permitindo monitoramento e controle em tempo real. Paralelamente, ampliará a digitalização da distribuição: os medidores inteligentes passarão de 400 mil para 1,7 milhão, e serão instalados 40 mil religadores automatizados até 2029, reduzindo interrupções e aumentando a resiliência da rede. A companhia também lidera projetos inovadores, como a primeira microrrede integrada do Brasil, em Serra da Saudade, com usina solar e baterias. Essas iniciativas posicionam Minas como referência em inovação, fortalecendo a transição para uma matriz limpa e digital.
Sabemos que a eventual incapacidade do sistema para suprir picos de demanda ou de tensão pode causar não apenas transtornos aos usuários da rede, como também originar pleitos indenizatórios em virtude de perdas e danos. Além disso, a mídia especializada aponta consistentemente para uma escassez de potência iminente no setor elétrico brasileiro e uma redução na capacidade de gerenciamento do sistema pelo Operador Nacional, o ONS, em virtude do aumento das chamadas fontes "não despacháveis". Existe alguma medida em nível local que a Cemig esteja tomando ou possa tomar para mitigar esses problemas em sua concessão? Em caso positivo, poderia citá-la?
A adoção do ADMS marca um avanço inédito para a Cemig, permitindo identificar e corrigir falhas automaticamente, reduzir o tempo de restabelecimento e realizar simulações em tempo real para decisões mais precisas. A tecnologia também integra fontes renováveis distribuídas, aumentando a confiabilidade e mitigando os efeitos da intermitência. Mas para enfrentar esse problema, é essencial modernizar a regulação do setor, dando ao ONS maior flexibilidade para evitar o curtailment e o vertimento turbinável, que são esses desperdícios de energia limpa (solar, eólica e hidrelétrica). Em 2025, 38.637 GWh foram descartados enquanto 36.991 GWh foram gerados por térmicas, um contrassenso não só ambiental, mas econômico que custou cerca de R$ 8 bilhões. Reduzir esses cortes exige ampliar redes e adotar soluções inovadoras, como gestão inteligente, armazenamento em baterias e usinas reversíveis, garantindo eficiência, sustentabilidade e menor custo para os consumidores.