A MEDIAÇÃO NO TCU RACIONALIZAÇÃO E SEGURANÇA JURÍDICA
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Siga noO entrevistado central do D&J é o ministro Bruno Dantas que, apesar de ainda não ter completado 50 anos, já possui uma carreira de experiência invejável. Nascido em Salvador em 1978 e criado em Feira de Santana, Bahia, passou pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), onde foi autor de algumas das relevantes proposições hoje em vigor, atuou na advocacia privada e, atualmente, é ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), Corte que presidiu de 2022 a 2024. Em seu mandato à frente da mais alta Corte de Contas, criou a Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso), que considera “um dos projetos mais transformadores” de sua gestão, como “instrumento de racionalização de conflitos e de fortalecimento da confiança entre o Estado e seus parceiros”. Bruno Dantas aborda, em sua entrevista, com a desenvoltura e o brilhantismo que lhe são peculiares, temas atualíssimos como o excesso de judicialização no Brasil, a Lei de Abuso de Autoridade, as ações estatais frente às mudanças climáticas, a liderança brasileira na agenda climática e muita coisa mais.
Eu defendo a transparência não como retórica, mas como estratégia de controle. O TCU tem hoje cerca de 1600 auditores, mas queremos empoderar 210 milhões de brasileiros com as ferramentas para que cada cidadão se torne um fiscal da boa aplicação dos recursos públicos. O empoderamento do cidadão é o caminho mais eficiente para uma democracia de resultados. A atuação do Tribunal, nesse contexto, se dá com firmeza técnica e com respeito às instituições. Nossa missão não é buscar protagonismo, e sim gerar confiança. Quando o TCU atua com previsibilidade, com profundidade técnica e com compromisso com a estabilidade regulatória, ele cria um ambiente favorável para o investimento, para a inovação e, em última instância, para o desenvolvimento do país.
Por sua iniciativa, quando exerceu, de 2022 a 2024, a presidência do Tribunal de Contas da União, foi criada a Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso). No que consiste e quais as atribuições e objetivos da SecexConsenso?
A criação da SecexConsenso foi um dos projetos mais transformadores de minha gestão na Presidência do TCU. Ela materializa um novo paradigma na atuação das instituições de controle: em vez de apenas apontar falhas após o dano, buscamos prevenir litígios, preservar contratos e oferecer segurança jurídica ao investimento privado. Tratase de uma Secretaria especializada na mediação qualificada de controvérsias entre o poder público e seus parceiros privados, especialmente nos setores de infraestrutura e concessões. A lógica é simples, mas poderosa: em vez de o Estado impor unilateralmente soluções que geram resistência, judicialização e paralisia, propõe-se a construção conjunta de respostas juridicamente adequadas, economicamente sustentáveis e socialmente benéficas. A governança que idealizei para a SecexConsenso é robusta e transparente. A mesa de negociação é coordenada pela própria Secretaria, mas dela participam, como membros efetivos, um representante da unidade de auditoria especializada, outro da agência reguladora, outro do ministério setorial envolvido, um representante da Advocacia-Geral da União — que oferece a visão jurídica do Executivo — e, claro, o representante da concessionária ou empresa privada responsável pela execução do contrato. Esse modelo promove a escuta técnica e a negociação institucional entre todos os atores relevantes, num ambiente seguro, objetivo e orientado a resultados. Outro pilar desse modelo é o tempo: as tratativas seguem prazos rígidos, definidos por Instrução Normativa, de modo a impedir que a mediação se transforme em instrumento de procrastinação. Chegando-se a um consenso, o acordo é submetido ao Ministério Público para emissão de parecer, e em seguida ao relator no TCU, que apresenta voto ao plenário. Não há decisões monocráticas: a homologação é sempre colegiada. Quando o TCU aprova o acordo, autoriza-se que o presidente do Tribunal o subscreva como interveniente, o que equivale a uma declaração formal de que, nos termos pactuados, não há irregularidades a serem controladas ex post. O efeito prático disso é enorme: dá-se previsibilidade às partes e resgatam-se investimentos que muitas vezes estavam bloqueados havia anos. Esse novo modelo inova sem romper com a legalidade. Pelo contrário: ele a revitaliza, devolvendo racionalidade econômica ao direito administrativo, sem jamais transigir com a integridade. E mais do que resolver casos concretos, ele semeia uma nova cultura de governança pública, fundada no diálogo, na tecnicidade e na busca de soluções que maximizem o interesse público em sentido estratégico.
Os objetivos da SecexConsenso têm sido alcançados? Pode citar algumas das conquistas atingidas com o novo órgão criado em 2023? Quais as metas para a SecexConsenso a médio prazo?
Em pouco mais de dois anos de funcionamento, a SecexConsenso alcançou resultados expressivos, que evidenciam seu potencial como instrumento de racionalização de conflitos e de fortalecimento da confiança entre o Estado e seus parceiros. Já são 16 acordos homologados, que envolvem a reprogramação de centenas de bilhões de reais em investimentos privados, destravando obras e serviços paralisados por disputas contratuais. Entre os casos emblemáticos, destacam-se os acordos relativos à malha paulista e à Fernão Dias, que viabilizaram modernizações importantes no setor ferroviário e rodoviário, além de contratos como os dos aeroportos de Guarulhos, das usinas térmicas contratadas no auge da crise hídrica, e de grandes operadoras de telecomunicações, como Oi e Telefônica. São litígios que, em regra, se arrastavam há anos — e, em alguns casos, por mais de uma década —, mas que foram resolvidos em poucos meses, com segurança jurídica e previsibilidade.
No Brasil, somente em 2024, 39 milhões de novas ações foram judicializadas. A autocomposição deve ser uma bandeira geral do judiciário e da própria OAB? Na sua opinião, o que fazer para reduzir o volume de ações sem cercear a defesa e, ao mesmo tempo, julgando os processos com a necessária especificidade que cada caso merece?
O excesso de judicialização é sintoma de disfunções maiores. Em muitos casos, decorre da ausência de canais eficazes de diálogo entre o cidadão e o estado. A autocomposição, nesse contexto, é uma necessidade estrutural, e não um paliativo. É preciso formar profissionais com competências negociais, reformar o desenho institucional dos litígios e fomentar ambientes propícios à construção de soluções consensuais. A experiência da SecexConsenso mostra que é possível tratar conflitos complexos com racionalidade, técnica e segurança jurídica. Além disso, é fundamental superar os traumas da judicialização excessiva. A jurisprudência da Lava-Jato, ao criminalizar o diálogo entre agentes públicos e privados, provocou o chamado “apagão das canetas” — uma paralisia decisória por medo de sanções. A maturidade institucional exige ambientes de controle robustos, mas também justos, equilibrados e previsíveis. Nesse ponto, a Lei de Abuso de Autoridade é um marco importante.
O Sr. foi presidente da INTOSAI (Organização Internacional das Instituições Superiores de Controle) durante seu mandato à frente do TCU, entre 2022 e 2024. Como o TCU brasileiro se posiciona em relação às cortes de contas dos países mais desenvolvidos? O TCU tem levado contribuições positivas à INTOSAI? Quais?
O Brasil ocupa hoje uma posição de destaque entre as instituições superiores de controle do mundo. O Tribunal de Contas da União é reconhecido por sua densidade técnica e sua capacidade de articulação institucional e de formulação de soluções inovadoras para problemas complexos. Durante minha presidência no TCU, tive a honra de também presidir a INTOSAI — entidade que reúne mais de 190 cortes de contas e exerce papel decisivo no aprimoramento global do controle das finanças públicas. Um dos projetos mais importantes da minha gestão na INTOSAI foi o lançamento do ClimateScanner, uma ferramenta inédita de avaliação global das ações estatais frente às mudanças climáticas. Trata-se de um instrumento desenhado para que as instituições de controle possam, a partir de uma metodologia comum, analisar como os governos estão estruturando políticas de mitigação e adaptação, além de avaliar se os orçamentos nacionais estão verdadeiramente alinhados com as metas ambientais. O projeto teve apoio do Banco Mundial, da OCDE e da Comissão Europeia, além de forte receptividade entre países das Américas, Europa, África e Ásia. Essa liderança brasileira na agenda climática, aliada a outras iniciativas de vanguarda — como a SecexConsenso, que já despertou o interesse de vários tribunais de contas estrangeiros — demonstra que o TCU deixou de ser um órgão apenas recebedor de boas práticas e passou a ser também um exportador de modelos institucionais. O que antes parecia um privilégio das cortes de contas dos países mais ricos, hoje é realidade no Brasil: atuação pautada pela integridade, pela inovação e pela busca contínua de resultados concretos para o cidadão.
O Sr. é mestre e doutor em direito processual civil pela PUC/SP, foi pesquisador na Benjamin N. Cardozo School Law (Nova York), no Max Planck Institute for International, European and Regulatory Processual Law (Luxemburgo) e na Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne e, hoje, é professor na faculdade de direito da Fundação Getúlio Vargas-FGV. Qual o conselho que o Sr. que, com atuais 47 anos tem uma das carreiras mais precoces e brilhantes do país, dá para quem está cursando direito ou é recém-formado, num país com mais de 1800 faculdades de direito e quase 1,4 milhão de advogados?
Cresci no interior da Bahia, em Feira de Santana, numa família de classe média baixa. Estudei em escolas razoáveis para o meu padrão de vida, distantes dos centros de excelência. Enfrentei jornadas longas de ônibus para estudar e, desde cedo, descobri que os concursos públicos eram o espaço onde minha dedicação e esforço poderiam compensar as desigualdades de origem. Ainda que não houvesse igualdade de ponto de partida, havia, ao menos, paridade de armas — e essa percepção me guiou ao longo de toda a minha trajetória. Aos jovens juristas, meu conselho é direto: apostem na profundidade. O direito exige mais do que memorização de normas. Ele exige densidade intelectual, compreensão histórica, sensibilidade social e firmeza ética. Quem deseja fazer a diferença precisa estudar com seriedade, ler com espírito crítico, dominar a técnica sem jamais perder de vista os valores. O prestígio pessoal deve ser visto como consequência, não como objetivo. O que dá grandeza à carreira jurídica é o compromisso com a coletividade, com a construção de soluções justas e sustentáveis. Em um país como o nosso, marcado por desafios estruturais, o bom jurista é aquele que entende que sua função não se limita a interpretar leis, mas se estende a oferecer caminhos para um futuro mais digno. Em síntese: que cada jovem advogado ou estudante de direito compreenda que, por trás de cada processo, há uma vida — e que é por ela que vale a pena lutar.
O Sr. foi conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) de 2009 a 2011, oportunidade em que foi o autor da proposta de criação do Portal da Transparência do Ministério Público (MP) e de um banco de dados para reunir informações sobre ações civis públicas e inquéritos civis propostos pelo MP. O que estas duas iniciativas trouxeram de mudança para a atuação dos promotores e procuradores e o que asseguraram ao jurisdicionado?
A transparência é a antessala da responsabilidade. Quando atuei no Conselho Nacional do Ministério Público, entre 2009 e 2011, tive a honra de propor duas iniciativas que hoje me parecem ainda mais relevantes do que na época em que foram concebidas: o Portal da Transparência do Ministério Público e o banco nacional de dados de inquéritos civis e ações civis públicas. Essas ferramentas não apenas democratizaram o acesso à informação, como também permitiram à própria instituição um exercício mais eficiente de autocontrole e planejamento estratégico. Para o cidadão, os ganhos foram expressivos: tornou-se possível acompanhar, em tempo real, o destino dado às denúncias apresentadas ao Ministério Público, bem como conhecer as ações ajuizadas em defesa de interesses difusos e coletivos. Com isso, contribuímos para transformar o Ministério Público em uma instituição mais permeável ao olhar da sociedade e mais capaz de justificar, com dados objetivos, suas prioridades. A transparência, nesse caso, serviu de ponte entre a legitimidade constitucional e a confiança popular. Por outro lado, no CNJ, onde também fui conselheiro, tive a honra de ser o autor e relator da resolução que implementou a Ficha Limpa no Poder Judiciário, impondo vedação à nomeação de pessoas com condenação judicial para cargos em comissão e funções de confiança. Aprovada por unanimidade, a medida foi um passo firme no fortalecimento da confiança pública nas instituições judiciais. Sempre entendi que aqueles que ocupam postos de direção, assessoramento ou chefia no Judiciário devem ter biografia ilibada, pois são a face visível da Justiça perante o cidadão. A integridade de quem toma decisões internas no Judiciário repercute diretamente na percepção de imparcialidade e respeito às regras. E a confiança, uma vez abalada, não se reconstrói com retórica, mas com atos concretos. Essa resolução antecipou debates que só mais tarde ganharam centralidade no país, reafirmando o papel do CNJ como formulador de políticas públicas judiciais. Foi uma experiência que me marcou profundamente e que reforçou, em minha trajetória, o compromisso com a ética como pilar da governança pública.
O Sr., desde 2014, é Ministro do Tribunal de Contas da União (TCU). Para aqueles que não sabem, como órgão de controle externo qual a importância do TCU para democracia brasileira?
O Tribunal de Contas da União é um dos pilares institucionais da democracia brasileira. Seu papel vai muito além da fiscalização contábil ou mero auxiliar do Congresso Nacional no controle externo. O TCU guarda a responsabilidade fiscal, zela pela boa governança pública, fiscaliza a legalidade, legitimidade e a efetividade das políticas públicas e atua para assegurar a correta aplicação dos recursos públicos. Tudo isso com independência e com senso de construção institucional. A democracia não é apenas o governo da maioria — ela também exige, dentre outras coisas, responsabilidade com o erário e compromisso com o resultado das políticas públicas. A transparência é um vetor essencial para esse modelo de atuação.