RAINHA DA DISCÓRDIA

Ame ou deixe-as: uvas-passas são ingredientes polêmicos no Brasil

No doce ou no salgado, despertando amor ou repulsa, a uva desidratada é, sem sombra de dúvidas, uma notável presença nas ceias de Natal

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Pequenas no tamanho, mas grandes quando o assunto é polêmica. As uvas-passas protagonizam um dos grandes embates da culinária brasileira, especialmente durante o fim do ano, momento em que dividem famílias entre dois times: os que amam e os que odeiam.

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Nas festas de dezembro, as uvas desidratadas ganham mais visibilidade por aparecerem em pratos tradicionais das ceias dos brasileiros, como a farofa e o salpicão. E essa mistura do doce com o salgado – o agridoce – não é nem de perto um consenso por aqui. Talvez seja por isso que as passas, apesar de tão pequenas e aparentemente inofensivas, causam tanta discórdia.


Não há como precisar a origem da uva-passa, mas o fato de já ter sido mencionada em textos do Antigo Testamento da Bíblia mostra que ela é consumida há milhares de anos. O ingrediente surgiu de forma despretensiosa, por meio de uvas que caíam de parreiras e eram naturalmente desidratadas pelo sol.


“Ela foi incorporada na cozinha europeia há muitos anos, inclusive em preparos ligados ao Natal, já que é um período de inverno no hemisfério Norte, em que as frutas são escassas”, explica o professor do Senac Jefferson Ferreira.


Esse costume, segundo o professor, chegou até nós justamente por meio de povos europeus – especialmente os portugueses. “Eles descobriram que a fruta desidratada também era uma ótima alternativa para as longas viagens, uma forma de conservar o produto.”

O professor do Senac Jefferson Ferreira explica que a tradição de usá-las nas ceias natalinas vem da Europa
O professor do Senac Jefferson Ferreira explica que a tradição de usá-las nas ceias natalinas vem da Europa Sistema Fecomércio MG/ Divulgação


E a uva-passa chegou com tudo. De acordo com Jefferson, sua popularização teve início no princípio do século 20, quando mais produtos importados começaram a desembarcar no Brasil. Ela se tornou um clássico complemento de arroz, farofa e salpicão no Natal e ainda ganhou fama sozinha. Até hoje, as pessoas se lembram da uva-passa na caixinha vermelha, um ícone dos anos 1980 que é difícil de encontrar atualmente.

No salpicão

O salpicão de Natal do restaurante Cozinha Santo Antônio é feito com uva-passa branca hidratada no vinho
O salpicão de Natal do restaurante Cozinha Santo Antônio é feito com uva-passa branca hidratada no vinho Tulio Santos/EM/D.A. Press


No Cozinha Santo Antônio, restaurante no bairro de mesmo nome, Região Centro-Sul de BH, os clientes encontram, vez ou outra, o salpicão da chef Juliana Duarte no menu executivo. Nesta época do ano, esse item está disponível para a ceia dos clientes, em um menu de encomendas especial para o Natal.


Ju costuma trabalhar com o salpicão de frango ou lombinho defumado, mas, para o cardápio natalino de 2025, apostou na segunda opção, que é a sua favorita. “Sempre gostei de uva-passa, me lembro de comer a da caixinha vermelha na minha infância. E para mim o salpicão tem que ter passas, não dá para deixar de colocar”, diz a chef.


Na sua receita, a uva-passa usada é a branca, hidratada no vinho. “Particularmente prefiro ela na comida, acho mais macia e não percebo as pessoas implicando com ela por aqui.” Cenoura ralada e milho também se unem às passas no prato.


Na receita disponibilizada para o Natal, a chef ainda usa cranberry, queijo, castanhas e molho de iogurte de leite de ovelha (no lugar da maionese, até por uma questão de durabilidade e logística). Por cima, batata-doce colorida palha. O prato, vendido como acompanhamento para quatro pessoas, custa R$ 220.


No mesmo menu de encomendas, os clientes podem encontrar o polêmico arroz que leva passas. Por lá, no entanto, ele é feito com arroz negro e vermelho e frutas secas (uva-passa, damasco e tâmaras) refogadas com especiarias. “Esse arroz já é um clássico do Natal da minha casa.”

Dentro de salgadinho

Homenagem ao presidente JK, o salgado Juscelino de frango é o único da Boca do Forno que tem passas
Homenagem ao presidente JK, o salgado Juscelino de frango é o único da Boca do Forno que tem passas Boca do Forno/Divulgação


A uva-passa está, durante todo o ano, no recheio de um dos salgadinhos mais típicos de BH. O Juscelino, espécie de “evolução” do pastelzinho clássico, encanta por ser extremamente recheado e pela crocância de sua casquinha empanada com queijo ralado bem fininho.


Segundo Jefferson Ferreira, professor do Senac, uma das possíveis origens do salgado é que ele tenha sido criado como forma de homenagem ao ex-presidente do país, Juscelino Kubitschek. “Dizem que uniram, para receber o ex-presidente, tudo que ele mais gostava em um único salgado e, assim, surgiu esse sucesso.”


Tipicamente, ele é recheado com uma mistura de presunto, queijo, maionese, creme de leite e passas, explica Jefferson. Outras versões usam frango desfiado no lugar do presunto. Na Boca do Forno, tradicional lanchonete belo-horizontina com diversas unidades espalhadas pela cidade, é isso que acontece. A versão com presunto é até vendida, mas não leva passas.


“O Juscelino de frango é o nosso único salgado que leva uva-passa e está disponível desde 2003. Quem gosta desse sabor já procura diretamente, é um item que tem um público muito fiel”, explica Danielle Zabeu, responsável pelo marketing e comunicação da marca. O produto é fabricado diariamente e vendido em forma individual no balcão (R$ 14,50) ou para festas, em versão menor (R$ 199 o cento).

Garantida nos panetones

Se tem uma receita onde o ingrediente é bem-aceito, é no panetone; o da Albertina ainda leva laranja, damasco e limão confitados
Se tem uma receita onde o ingrediente é bem-aceito, é no panetone; o da Albertina ainda leva laranja, damasco e limão confitados Studio tertúlia/Divulgação


Se nos preparos salgados a uva-passa é a rainha da discórdia, em pratos doces ela parece ser mais aceita. O clássico panetone, por exemplo, leva esse ingrediente e outras frutas cristalizadas.


Renata Rocha, padeira especialista em fermentação natural e fundadora da Albertina Pães, loja no Bairro Lourdes, Região Centro-Sul de BH, destaca que o panetone de frutas (com passas, laranja, damasco e limão confitados), vendido por R$ 180, é o seu favorito.


“Acho que o chocolate no panetone mascara o sabor da fermentação natural, a acidez.” Apesar disso, o campeão de vendas em sua loja ainda é o de chocolate 63% cacau, avelãs e laranja confitada vindo diretamente da Sicília, na Itália. Também custa R$ 180.


Mesmo assim, a padeira destaca um crescimento na demanda de panetones como um todo neste ano. “Acho que nunca se falou tanto em panetone aqui e acho que o fenômeno das redes sociais tem relação com isso.”

Outros pães


O panetone é considerado um pão de celebração e, claramente, caiu no gosto do brasileiro. Apesar disso, o que Renata explica é que diversos outros pães europeus têm características semelhantes a do de origem italiana. “Na Europa, o Natal ocorre no inverno, época em que esses pães enriquecidos com manteiga e frutas fazem muito sucesso, até por não terem muitas frutas frescas disponíveis.”


Como exemplo, a padeira cita o stollen, pão alemão também ligado ao Natal. É uma espécie de brioche com frutas embebidas em álcool e recheado com marzipã (doce de amêndoas, açúcar e clara de ovo). Por cima, vai açúcar de confeiteiro.


Outro pão com passas que já saiu em algumas fornadas (que variam constantemente) da Albertina é uma massa de fermentação natural (sourdough) com nozes e uva-passa. “É um super clássico europeu, perfeito para comer com queijo azul.”

Resistência dos brasileiros


A venda desse pão, entretanto, não é expressiva como a de outras versões dele, sem as passas. “Se coloco o pão com nozes e passas, sinto um preconceito do público, mas, se faço com cranberry e nozes, o pessoal compra loucamente, sendo que esses dois itens têm dulçor parecido, fazem quase o mesmo efeito”, comenta.


Renata diz não entender bem o porquê desse preconceito do brasileiro em relação à uva-passa. “Eu particularmente adoro. Tenho na minha casa e uso quase todos os dias na salada.”


O francês pain aux raisins, folhado com creme de confeiteiro e uva-passa banhada no rum, é outra prova cabal da resistência com a fruta desidratada. “A gente teve que desistir dele. Se faço aqui, praticamente não sai”, lamenta a padeira, que diz adorar esse pão.


Sabor nostálgico

As uvas-passas ficam embebidas em rum por ao menos seis meses
As uvas-passas ficam embebidas em rum por ao menos seis meses Tulio Santos/EM/D.A. Press

A uva-passa também é a estrela de um sabor de sorvete que marcou gerações de brasileiros. Passas ao rum foi, principalmente nas décadas de 1970 e 1980, um sucesso de vendas, tanto em sorveterias quanto em prateleiras de supermercados.


“Era um dos sabores mais vendidos da Kibon”, destaca Liliane Lacôrte, sócia, ao lado de sua irmã, Aline, da Sorveteria Universal. A marca tem unidades nos bairros Mangabeiras e Floresta, Região Centro-Sul e Leste de BH, respectivamente.


Liliane também chama atenção para o fato de, hoje, as grandes indústrias não se atentarem mais a esse sabor. “Ele foi esquecido pelo mercado”. Na Universal, por outro lado, continua sendo produzido e fazendo sucesso.


“Ele é um dos clássicos, junto com o sabor ameixa, por exemplo. Nós o vendemos desde a década de 1950 e nunca deixamos de fazer. A gente aposta nesses sabores do passado.” O valor da bola de sorvete na Universal é R$ 15.

Explosão na boca

Esquecida pela indústria, a receita é mantida desde 1950 no cardápio da Sorveteria Universal, das irmãs Aline e Liliane Lacôrte (ao lado da mãe, Thelma)
Esquecida pela indústria, a receita é mantida desde 1950 no cardápio da Sorveteria Universal, das irmãs Aline e Liliane Lacôrte (ao lado da mãe, Thelma) Tulio Santos/EM/D.A. Press


O sorvete de passas ao rum é produzido toda semana na Universal. Para isso, Liliane, responsável pela produção, usa uvas-passas embebidas em rum por ao menos seis meses. “Tenho vários potes para ter passas prontas durante todo o ano”.


As passas e o rum dessa “conserva” vão na base do sorvete, batidos, e por cima, na finalização. “Essas passas hidratadas ganham outra textura, não são secas. Elas explodem na boca”, comenta Liliane.

Das telas para a casquinha

Em uma cena do longa-metragem, a família Paiva aparece feliz degustando a antiga combinação em uma sorveteria
Em uma cena do longa-metragem, a família Paiva aparece feliz degustando a antiga combinação em uma sorveteria Sony Pictures/Divulgação


O recente sucesso de “Ainda estou aqui”, filme de Walter Salles, também teve bastante influência no consumo do sorvete de passas ao rum ao longo do último ano. Isso porque era o sabor favorito de Rubens e Eunice Paiva, empresário e político brasileiro perseguido e morto durante a ditadura militar e sua mulher.


Em uma cena do longa-metragem, a família Paiva aparece em uma sorveteria degustando o sabor. “Vejo que em um ano tivemos um aumento significativo na demanda desse sabor. Ele passou a ser produzido semanalmente, com a mesma frequência que todos os nossos maiores sucessos”, explica Liliane. Segundo ela, apesar de ainda existir, apenas algumas sorveterias, sobretudo as mais tradicionais de BH, trabalham com passas ao rum.


“O filme trouxe essa curiosidade para muita gente e acho que também lembrou outras pessoas que tomavam sorvete de passas ao rum na infância”, diz, deduzindo a influência do cinema em seu negócio. Ainda sobre o filme, ela destaca a simbologia do sorvete, daquele momento feliz que a família viveu comendo essa iguaria, mesmo em meio a um contexto de violência e perseguição política.

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Serviço


Cozinha Santo Antônio

  • Rua São Domingos do Prata, 453, Santo Antônio
  • (31) 98218-6427
  • @cozinha_santoantonio
  • Terça e quarta, das 12h às 15h;
  • Quinta, das 12h às 15h e das 19h às 23h;
  • Sábado e domingo, das 12h30 às 17h30.

Boca do Forno

  • Rua Antônio de Albuquerque, 707, Savassi
  • (31) 3327-2027
  • @bocadoforno
  • De segunda a sexta, das 8h às 20h;
  • Sábado, das 8h às 18h.

Albertina Pães

  • Rua Fernandes Tourinho, 1010, Lourdes
  • (31) 99793-8990
  • @albertina_paes
  • De quarta a sexta, das 10h às 18h30;
  • Sábado, das 9h30 às 14h.

Sorveteria Universal 

  • Avenida do Contorno, 1853, Floresta
  • (31) 97212-5036
  • @sorveteriauniversal
  • Segunda e terça, das 11h30 às 18h30;
  • Quarta e domingo, das 11h30 às 19h30;
  • De quinta a sábado, das 11h30 às 20h30.

*Estagiária sob supervisão da subeditora Celina Aquino

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