ALMA DE POLPA AMARELA

Festa celebra pequi e outros 'tesouros' do Norte de Minas

Produtores, cozinheiros e empreendedores transformam frutos nativos em riquezas mineiras e mostram que a tradição resiste

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Montes Claros – Há lugares que parecem guardar a alma dentro de um aroma. Em Montes Claros, no Norte de Minas, ela cheira a polpa amarela, castanha tostada e vento quente que carrega o perfume de doces e rapaduras. Ali, no chão generoso do cerrado, o paladar tem sotaque próprio – e quem o conduz são homens e mulheres que decidiram que suas raízes merecem continuar de pé, frutificando.

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Acompanhamos de perto esse movimento durante a Festa Nacional do Pequi, realizada no último fim de semana, em Montes Claros, a cerca de 420 quilômetros de Belo Horizonte. Mais que culinário, é um evento afetivo e político. Produtores, cozinheiros, empreendedores e guardiões da terra transformam frutos nativos, especialmente o pequi, em riquezas orgulhosamente mineiras e resistem ao avanço do esquecimento.


Uma delas é Érica Maria Oliveira, porta-voz do Solar dos Sertões. Localizado bem no Centro da cidade, na Praça Doutor Chaves, do lado oposto da Igreja Matriz, o restaurante ocupa um casarão antigo de portas largas e janelas azuis. O estabelecimento surgiu para representar a Cooperativa dos Agricultores Familiares e Agroextrativistas Grande Sertão (Cooperativa Grande Sertão).


A marca foi instituída em 2003, com a missão de congregar agricultores familiares e extrativistas norte-mineiros. Ela busca beneficiar e comercializar diferentes produtos do semiárido, que são desenvolvidos de acordo com princípios agroecológicos, além de promover ações para a melhoria da qualidade de vida dos cooperados e consumidores.


“A cooperativa está com mais de 20 anos e surgiu com quatro pessoas. Agora já inclui muitos parceiros e, além do restaurante, também há um empório de produtos para o pessoal”, contou Érica Maria.


Agricultura familiar


O restaurante funciona para o almoço, de segunda-feira a sábado, a partir das 11h. “Nosso trabalho é valorizar os frutos do cerrado e os produtores da região. Tudo vem da agricultura familiar”, explicou.


No cardápio, o sabor é manifesto. No dia da visita, Érica falou das criações como quem apresenta tesouros. Destaque para a coxinha empanada servida com molho e geleia de umbu; o clássico torresminho crocante “servido com limão, que não pode faltar”; e o “Montesclareou”, estrogonofe de carne de sol com lascas de pequi, que pode ser acompanhado de arroz branco ou arroz com pequi e salada. É o campeão de vendas da casa.


A identidade do Solar dos Sertões também aparece engarrafada. A criação é uma cerveja artesanal equilibrada com o sabor incomum do coquinho-azedo, também conhecido como butiá. “É um fruto bem típico do cerrado e tem um aroma muito marcante”, destacou Érica Maria. A receita da bebida foi pensada para que o resultado ficasse refrescante e aceitasse bem a acidez, o perfil aromático e todas as peculiaridades do fruto.

Cerrado no copo


Se o cerrado surpreende no prato, há quem aposte nele até no copo. E quem poderia imaginar que o pequi, tão nobre nas panelas do sertão, acabaria em versão líquida e borbulhante? A ideia parece improvável, até encontrar a convicção de Tereza Cristina Brant, mestre cervejeira e sócia da Mut Cervejaria, que há cinco anos produz rótulos em Montes Claros.

O desejo de trabalhar com frutas do cerrado levou a Mut a criar uma cerveja de pequi
O desejo de trabalhar com frutas do cerrado levou a Mut a criar uma cerveja de pequi Glauber Prates/Divulgação


“Sempre buscamos novos desafios e novos estilos. Trabalhamos com cinco tipos de cervejas artesanais: lager, session IPA, APA, porter e amber. Essas são tradicionais e, esporadicamente, tentamos um diferencial, sempre buscando um fruto, para trazer mais conexão com o nosso mundo. Esbarramos em tentar fazer algo com o fruto do nosso cerrado e fizemos com o pequi”, explicou.


A experiência, porém, não veio sem tropeços. O fruto, dono de um óleo intenso e personalidade forte, não se entrega fácil. “Foi uma receita muito difícil. O óleo do pequi interfere na carbonatação, então, manter a qualidade da cerveja e as características dela foi um desafio enorme. Mas conseguimos um equilíbrio que agradou bastante gente”, comemorou.

Quando o primeiro lote ficou pronto, ela fez o teste definitivo: servir sem contar o segredo. “Ninguém imaginou que era pequi. Falavam coquinho, mangaba… sempre frutos da região. Quando eu falava que era de pequi, o pessoal não imaginava ser possível fazer esse teste”, relatou a mestre cervejeira. A bebida é semelhante ao estilo lager, acompanha o terroir do cerrado e possui um fundo frutado.


E os planos da marca não param no pequi. A cervejaria mira outros ingredientes norte-mineiros - e a castanha do baru, ou “bauru”, como a sócia diz com carinho regional, pode ser a próxima estrela. “A gente quer continuar nessa linha, criando cervejas com ingredientes daqui”, revelou. Vale a visita na Mut de terça a sábado, das 17h às 23h.

Combinação improvável


Que o pequi anda quase sempre ao lado do arroz não é novidade. Mas poucos exploram combinações que não se restringem ao grão branco tradicional. Michelle Farah é a idealizadora da marca Ôh Pote! Risotos e Sabores e, apostando no potencial do arroz arbóreo, leva o clássico italiano para o sertão.


“A Ôh Pote! nasceu em 2023, com uma necessidade de mudança de vida. Em abril, faremos três anos. Começamos on-line em Montes Claros e hoje também estamos em Belo Horizonte”, apontou.


A proposta dela parece simples, mas tem um charme inteligente. Como diz o nome, dentro do pote vai tudo o que o risoto precisa - medido, selecionado e pronto para ir para a panela. “Basta você dissolver uma colher de manteiga, colocar 100ml de vinho branco seco e dois potes (o mesmo dos ingredientes) de água. Em 30 minutos você tem um risoto”, descreveu.

Michelle Farah, da Ôh Pote!, leva o arroz arbóreo para o sertão em potes que são sinônimo de praticidade
Michelle Farah, da Ôh Pote!, leva o arroz arbóreo para o sertão em potes que são sinônimo de praticidade Glauber Prates/Divulgação


O destaque da marca, desenvolvido este ano, é o risoto de carne de sol com pequi. “É uma forma de valorizar o que é nosso, trazer o sabor regional para uma técnica tradicional”, destacou a idealizadora. A linha conta hoje com dez sabores. Outros sempre procurados são o Mix de cogumelos e o Caprese mineiro, feito com queijo artesanal maturado por 270 dias, tomate seco, manjericão e orégano.

Potência de sabores


Na contramão das vitrines que surfam tendências gastronômicas e sabores passageiros, há quem prefira colher estação, tradição e raiz. Luciano Magalhães fez esse caminho – e apostou tudo nele.


Há 17 anos à frente da sorveteria Gosto do Cerrado, ele transformou frutas nativas em gelato mineiro, sem modismos fluorescentes ou nomes em inglês. Em vez disso, polpa fresca e cuidado artesanal. “Nossa proposta é baseada em três pilares: ganhar o dinheiro que preciso, ter qualidade de vida e gerar sustentabilidade”, disse.


Luciano não veio do ramo. Antes, passou por seis atividades diferentes. Até que a vontade de estar perto da família – e a coragem de trocar a rotina da construção civil por um freezer cheio de potencial – falaram mais alto. “Levamos dois anos para decidir. Minha esposa faz os sorvetes até hoje. Montamos um projeto, fui revisitar as famílias produtoras que eu já conhecia. Fui muito bem recebido”, comentou ele.

A sorveteria de Luciano Magalhães, Gosto do Cerrado, virou ponto de resistência ao apostar em produtos locais
A sorveteria de Luciano Magalhães, Gosto do Cerrado, virou ponto de resistência ao apostar em produtos locais Divulgação


A sorveteria virou ponto de resistência saborosa. Pequi, murici, araticum, manga rosa, castanha-de-baru, mangaba, buriti… e também receitas zero lactose, opções com kefir e fórmulas acompanhadas por farmacêuticos para públicos com restrições alimentares são encontrados aos montes. “Temos 215 receitas. Só na linha sem lactose, são mais de 50. Atendemos muitos clientes com intolerância”, afirmou.


As indicações são o sorvete do “ouro do cerrado”, que carrega um sabor adocicado e bem marcante. Já o de mangaba apresenta um fundo azedinho, enquanto o de baru surpreende pela crocância e cremosidade da castanha.


O segredo do sucesso das sobremesas está na ausência de gordura hidrogenada e qualquer tipo de atalho industrial. “Qualquer um pode fazer assim, mas grande parte dos sorveteiros não fazem. Você tem que fazer um sorvete para as pessoas como se estivesse fazendo para você”, ressaltou Luciano, que comanda a loja rústica e aconchegante, sempre preparada para receber quem quer se refrescar.

Compotas e geleias


Seguindo o curso de criações que abraçam a fartura do Norte de Minas, podemos encontrar uma verdadeira alquimia de frutas. Andréa Boaventura é produtora das geleias e compotas Viva Bem, que existe há oito anos, e desenvolveu recentemente a linha com ingredientes da região.


“A escolha dos sabores começou, em 2019, com a geleia de abacaxi com pimenta, para acompanhamento de churrasco de um grupo de amigos. O pessoal foi gostando e aumentando”, relembrou.

O creme de pequi da Viva Bem tem um toque de chimichurri, pimenta dedo-de-moça, alho e sal
O creme de pequi da Viva Bem tem um toque de chimichurri, pimenta dedo-de-moça, alho e sal Arquivo pessoal/Divulgação

Os sabores foram, naturalmente, multiplicando-se. “Foi-se criando um leque. Morango, manga com maracujá, pimenta. Até chegar aos frutos do cerrado.” As novas opções da Viva Bem são as geleias de mangaba, umbu e a receita especial do creme de pequi picante com especiarias.

“Tem que saber escolher a fruta. Tem que ser de qualidade para poder processá-la. É preciso também muita paciência durante o processo, porque, até chegar no ponto de geleia, demora bastante", compartilhou.


A produção de Andréa não leva açúcar nem conservantes e é 100% artesanal. O sucesso do creme é resultado da soma da polpa do pequi, chimichurri, pimenta dedo-de-moça, alho e sal. A loja funciona de forma virtual para os interessados em encontrar os produtos de qualquer lugar do Brasil.

Festa Nacional do Pequi


Montes Claros foi palco pela 32ª vez da Festa Nacional do Pequi. O fruto de cheiro inconfundível, sabor marcante e capaz de dividir opiniões foi a grande estrela de uma celebração que movimenta a cidade, reúne tradição, cultura, gastronomia e, principalmente, reforça o orgulho “geraizeiro”. Cerca de 30 mil famílias agricultoras participam da produção do fruto e ao menos 40 empreendedores do setor de alimentos e bebidas transformam o símbolo da região durante o evento.

Proteção está na lei


Há quem ame e roa até o caroço, mas também tem quem torça o nariz. Mas é inegável que o polêmico fruto amarelo vai além do aroma, textura e sabor marcantes. Cerca de 170 mil toneladas de pequi foram produzidas em Montes Claros, no último ano, com participação de 30 mil famílias. A importância é tamanha que há uma legislação que protege o “ouro do cerrado”. A Lei nº15.089/2025 proíbe a derrubada predatória dos pequizeiros, fomenta o plantio de mudas e promove o uso sustentável do fruto.

Anote a receita: Risoto de carne de sol com pequi (Michelle Farah – Ôh Pote!)

Ôh Pote! vende risoto de carne de sol com pequi
Ôh Pote! vende risoto de carne de sol com pequi Ôh Pote!/Divulgação

Ingredientes

  • 300g de carne de sol (dessalgada, cozida e desfiada);
  • 1 xícara de chá de arroz arbóreo;
  • 1/2 xícara de chá de lascas de pequi (ou pequis frescos cozidos);
  • 1,5 litros de caldo de carne (caseiro é preferível);
  • 1/2 cebola grande picada;
  • 3 dentes de alho picados;
  • 2 colheres de sopa de manteiga (pode ser manteiga de garrafa);
  • 100ml de vinho branco seco;
  • sal a gosto


Modo de fazer

  • Certifique-se de que a carne de sol esteja bem dessalgada, cozida e desfiada.
  • Mantenha o caldo de carne aquecido em fogo baixo durante todo o processo do risoto.
  • Em uma panela ou frigideira alta, derreta a manteiga.
  • Adicione a cebola picada e refogue até ficar transparente.
  • Acrescente o alho e doure.
  • Adicione a carne de sol desfiada e frite até dourar levemente.
  • Acrescente as lascas de pequi e misture bem por alguns minutos.
  • Adicione o arroz arbóreo e misture, “tostando” os grãos por cerca de 1 minuto, garantindo que fiquem bem envolvidos na gordura e temperos.
  • Despeje o vinho branco, mexendo sempre, até que o álcool evapore completamente e o líquido seque.
  • Comece a adicionar o caldo de carne quente, uma concha de cada vez.
  • Mexa constantemente até que o líquido seja quase todo absorvido antes de adicionar a próxima concha.
  • Continue o processo por cerca de 20 minutos, ou até que o arroz esteja “al dente” (macio por fora, mas firme por dentro) e o risoto esteja cremoso.
  • Acrescente uma colher de manteiga (opcional) para dar brilho e mais cremosidade.
  • Caso prefira praticidade sem perder o sabor, cozinhe a carne de sol na panela de pressão por 30 minutos. Desfie e reserve. Coloque as lascas de pequi para cozinhar e, depois de 20 minutos, reserve com a água.

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Serviço


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Praça Doutor Chaves, Centro
(38) 99964-2913

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Avenida Antônio Canela, 850, Canelas
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