Bares da madrugada são refúgio e respiro para trabalhadores da gastronomia
Cozinheiros, bartenders, sommeliers e gerentes falam sobre os lugares que gostam de frequentar quando encerram o trabalho
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O dia de quem trabalha na cozinha e no salão raramente termina quando o relógio marca o fechamento. Para muitos, a saída do restaurante significa o início de outra jornada: a busca por um lugar para comer, conversar e esvaziar a tensão do serviço.
Quando os restaurantes fecham as portas e os clientes voltam para casa, há quem comece, enfim, a relaxar. Cozinheiros, garçons e bartenders, acostumados a servir até tarde, encontram nos bares da madrugada um espaço para descompressão, convivência e, muitas vezes, networking.
O gerente do restaurante Tom – Cozinha de Herança, localizado no Centro de Belo Horizonte, Sebastião Adalberto Martins, de 36 anos, resume essa rotina. “Já teve época em que eu saía do trabalho e ia direto curtir. Hoje, prefiro chegar em casa, abrir uma cerveja e ver um filme. Mas entendo quem ainda precisa desse momento. A gente trabalha em um ambiente de muita pressão. Quando saio, quero o contrário disso: comida boa e simples, conversa leve.”
Nascido no Vale do Jequitinhonha, Sebastião chegou a BH em 2013. O primeiro contato com a gastronomia foi por acaso, em um freela no Edifício Maletta. O trabalho temporário virou profissão e o levou a cozinhas em Salvador e Recife até consolidar a carreira em casas sofisticadas.
“Confesso que prefiro a baixa gastronomia. Gosto de dar valor a ingredientes simples. Incomoda ver comidas que antes eram desvalorizadas virarem artigo de luxo. No fim, a gente que trabalha com isso muitas vezes não tem acesso.”
Essa contradição de trabalhar em restaurantes sofisticados e só poder relaxar em botecos aparece com frequência. A bartender Sabrina Aguiar da Silva, de 31, também do Tom, reforça a falta de espaços voltados para o público que trabalha à noite.
“A gente fecha o bar à meia-noite e muitas vezes não tem para onde ir. Faltam lugares pensados para quem trabalha na noite, e não só para quem sai para se divertir.” Sabrina diz que essa ausência muda o jeito de se relacionar. A vida social se restringe aos colegas de trabalho. “A gente cria bolhas. É difícil conciliar com quem tem rotina diurna. A não ser os amigos do trabalho, a gente não consegue programar nada.”
Segundo ela, o encontro em bares da madrugada é uma forma de “manter o equilíbrio”, ainda que o corpo já esteja cansado. “É o único horário que a gente tem para descontrair. Mesmo exausta, preciso conversar com alguém que entenda o que foi o dia.”
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O corpo não desacelera
A sommelière Erika Firmo, de 36, do restaurante Gata Gorda, na Savassi, Região Centro-Sul, conta que, mesmo quando o expediente termina, o corpo nem sempre entende que é hora de parar.
“Tem dia em que o corpo pede cama, mas a cabeça ainda está a mil. Nessas horas, o Bar do Isaque me salva. Lá tem comida farta, cerveja gelada e um ambiente tranquilo, cheio de colegas que também estão encerrando o dia.” Ela costuma ir sozinha e se sente segura. “Eles têm segurança na porta, é um diferencial”, diz.
Para a sommelière, esses bares funcionam como extensão do próprio ambiente profissional, mas de forma mais leve. “Percebi que minha vida estava girando só em torno do trabalho. Ir a esses lugares carrega minha bateria social, me ajuda a lidar melhor com o dia seguinte. É quase o único espaço que a gente tem para socializar.”
Erika também observa que sair para bares depois do expediente influencia seu olhar sobre o trabalho. “A gente repara na forma de atender, na limpeza do copo, no cuidado com a comida. Mesmo relaxando, o olhar profissional não desliga.”
Donos da madrugada
Aberto das 18h30 às 13h, o Bar do Isaque, no Centro da capital, virou ponto de encontro para quem sai dos turnos da noite. O proprietário Isaque Franca trabalhou como garçom antes de abrir o próprio negócio e conhece a rotina de quem busca um lugar seguro e acolhedor depois do expediente.
“Já fui garçom e sei o que é sair do trabalho e não ter onde comer. Por isso, abro até mais tarde. A gente serve de tudo, para quem quer comer rápido e para quem quer uma refeição que abraça o estômago. Por ser um bar familiar, o pessoal se sente em casa.”
O bar é tocado por Isaque, sua esposa, os filhos e três funcionários. O cardápio varia entre espetinhos de R$ 12 e pratos completos que chegam a R$ 90. O carro-chefe é o rocambole de torresmo de barriga, preparado um dia antes e assado por quatro horas, acompanhado de mandioca frita ou geleia de pimenta com abacaxi. Há também isca de tilápia e bolinho de costela desfiada, todos pensados para uma clientela que, muitas vezes, ainda vai trabalhar nas primeiras horas do dia.
“A galera da madrugada tem que comer bem, mas sem demorar. Muitos precisam pegar ônibus ou acordar cedo. Pensamos em cada detalhe. O público é fiel. Cerca de 90% volta toda semana.”
Apesar do sucesso, Isaque enfrenta desafios: encontrar funcionários dispostos a trabalhar de madrugada e lidar com a falta de apoio público. “Falta incentivo. Às vezes parece que a cidade não quer que a gente funcione. Mas esse horário é essencial para muita gente.”
Isaque revela que o seu outro empreendimento, Mr. Joseph Gastrobar, no Lourdes, Região Centro-Sul, atua com o cardápio expandido, oferecendo risoto, feijoada, camarão empanado, mas até meia-noite. “O objetivo é também funcionar até 3h da manhã. Para isso, estou treinando a equipe e observando a demanda nesta região.”
Tradição e novos públicos
Outro endereço que se tornou sinônimo de madrugada é o Bar Zé Luiz, abaixo do Mercado Novo. Há quase 40 anos, o bar abre das 2h30 às 11h e mantém o foco no público trabalhador. O atual responsável, Gilson Luiz Pereira, filho do fundador, explica que a clientela mudou, mas a essência é a mesma.
“Meu pai abriu o bar para quem trabalhava na madrugada – feirantes, taxistas, pessoal que descarregava mercadoria. Hoje vem um público mais misturado, mas o espírito é o mesmo: comida boa, atendimento rápido e cerveja gelada.” Os pratos seguem a tradição: tropeiro (R$ 25), feijoada (R$ 30) e pão com linguiça (R$ 20).
Gilson vê com naturalidade a chegada de um novo público, formado por jovens que saem das festas. “A gente perdeu um pouco da exclusividade dos trabalhadores, mas é bom ver o bar cheio de vida. Antes era só quem vinha da feira, agora tem o pessoal que sai da balada e quer comer tropeiro às 3h da manhã.”
Entre os frequentadores, está o bartender Marcos Botelho, de 32, da Casa Gabo, na Savassi. “Às vezes estou exausto, mas no sábado a energia é outra. A gente sai, vai em outro bar, conversa, troca ideia. Acaba sendo também um momento de conhecer gente e fazer contatos.”
Marcos trocou o escritório pela vida noturna e viu o ritmo de vida mudar completamente. “O cansaço não é só físico. É social também. A gente acorda mais tarde, vive em outro horário. A vida social passa a funcionar à noite. Frequentar esses bares é uma forma de estar com quem entende esse ciclo.”
A folga que vira festa
A escassez de espaços noturnos inspirou o bartender e consultor Felipe Brasil a criar, há 13 anos, a festa “Brasil Convida”, hoje realizada no bar Xangô, na Rua Sapucaí, Bairro Floresta, Região Leste de BH. O evento é realizado às segundas-feiras, dia de folga da maioria dos profissionais da gastronomia.
“Desde o início, a ideia foi fazer algo para esse público. Segunda é o único dia que o pessoal da noite tem para curtir. Criamos uma festa onde eles podem ser clientes, não funcionários.”
Felipe aponta que BH ainda carece de uma política pública voltada à vida noturna. “A prefeitura não colabora. Muitos bares são obrigados a fechar mais cedo por causa da lei do silêncio. Às vezes, o bar está ali há anos, e depois abrem prédios residenciais ao lado. BH é a cidade dos bares, mas não está preparada para funcionar de madrugada.”
Além de lazer, o evento funciona como rede profissional, onde muitos negócios nascem nesses espaços. “Gente que troca de emprego, conhece colegas, faz contato. A noite também é um ambiente de oportunidades.”
Começa cedo
A empresária Jéssica Belka, do Belka Quintal Bar, localizado no Bairro São Paulo, Região Nordeste de BH, adotou a mesma lógica. O bar abre às segundas e sextas, com roda de samba e feijoada, voltado para quem trabalha quando os outros descansam.
Apesar de estar fora da rota da zona boêmia da cidade. Jéssica afirma que vale a pena marcar presença no dia de folga. “O Belka é para esse público que trabalha quando todo mundo se diverte. Segunda e sexta são os dias em que o pessoal da cozinha e de outras áreas de prestação de serviço podem relaxar, encontrar amigos e curtir um pouco.”
O evento começa cedo, entre 13h e 19h, e tem foco no clima leve. “O público é majoritariamente de garçons, bartenders, chefs, donos de bar. E a gente sempre coloca mulheres nas rodas de samba. Queremos um espaço acolhedor, sem filas, onde dá para dançar e descansar.”
O retorno tem sido positivo, segundo Belka. “Ainda que tenham críticas sobre a limitação de dias e de reservas, quem compra o ingresso e curte um dia aqui entende o ambiente mais reservado e feito para descansar.”
Eu só quero relaxar
A chef Amanda de Castro, de 21 anos, da Casa Azeite, localizada no Bairro Floresta, Região Leste de BH, representa a nova geração da gastronomia. “Tem dia em que quero só uma cerveja e cama. Mas quando o dia é pesado, eu preciso sair, comer uma comida boa e ver a galera. Às vezes a gente vira o dia, mas vale a pena.”
Ela costuma passar no Bar do 1000TON, no Bairro Santa Tereza, ou em botecos próximos ao Mercado Novo, onde a noite resiste. “Geralmente, a gente vai para o Anexo, Bar do Renatão, Borda Bar, que ficam abertos até umas 2h, e depois seguimos para o Zé Luiz. Só que agora o público mudou, tem muita gente que sai da balada. A energia é outra e às vezes isso incomoda quem só quer descansar.”
À reportagem, a chef cita o Tim Bilhares, local no Centro que oferece comida, bebidas e sinuca por 24 horas. “Dizem que fica aberto o dia todo, mas eu já virei a madrugada e me pediram, educadamente, para ir embora às 6h. Queria ficar mais”, relembra, rindo.
Amanda também fala sobre o dilema de quem vive da gastronomia: o trabalho invade o tempo pessoal. “A gente sai de um dia exaustivo e quer só sentar e relaxar. Mas quando acha um lugar aberto, ele já está cheio, com gente que está bebendo há horas. Falta esse cantinho calmo para quem trabalha na noite.”
Mesmo com o cansaço, ela reconhece o valor da madrugada. “A gente não tem a opção de uma noite tranquila. Ou vai virado, ou dorme pouco e encara o dia seguinte. Mas é o único tempo que a gente tem para se sentir vivo fora do trabalho.”
BH dorme cedo
De acordo com dados da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel-MG), a capital mineira tem mais de 170 bares a cada 100 mil habitantes, mas apenas uma pequena parcela funciona após a meia-noite. “BH é uma cidade que vive da comida e da bebida, mas ainda dorme cedo”, resume o bartender e DJ Felipe Brasil.
Serviço
Tom – Cozinha de Herança (@tomcozinha)
Avenida Amazonas, 1049, loja 70, Centro
De sábado a quarta, das 18h à 00h
Gata Gorda (@gatagorda.bh)
Rua Levindo Lopes, 96, Funcionários
De terça a quinta, das 12h às 16h e das 18h às 0h; de sexta a sábado, das 12 à 00h; domingo, das 12h às 17h
Bar do Isaque (@isaque_bar)
Rua Padre Belchior, 292, Centro
(31) 98543-4486
De terça a domingo, das 18h30 às 3h
Bar Zé Luiz (@barzeluizltda)
Avenida Olegário Maciel, 752, térreo, lojas 41/43, Centro
(31) 99618-2675
De quarta a domingo, das 2h30 às 11h
Festa “Brasil Convida” no Xangô (@xangobh)
Rua Sapucaí, 281, Floresta
(31) 98752-2777
Segunda-feira, das 20h à 1h
Belka Quintal Bar (@belkaqb)
Rua Joaquim Gouveia, 361, São Paulo
(31) 98834-6839
Segunda e sexta, das 13h às 19h
Casa Azeite (@casa.azeite)
Rua José Pedro Drumond, 56, Floresta
(31) 99248-5993
De terça a sexta, das 18h30 às 23h; sábado, das 16h30 às 23h