Quem é a produtora de vinhos portuguesa conhecida como Senhora do Castelão
O que a mulher à frente da maior adega de Setúbal teve que enfrentar para conquistar respeito e se tornar referência
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Setúbal – A vontade de fazer diferente rendeu a Leonor Freitas, de 73 anos, o título de “Senhora do Castelão”. Em um mundo (das vinhas e dos vinhos) dominado por homens, ela teve força e coragem para se impor e se tornou conhecida, não só na Península de Setúbal, mas em todo o mundo. Há 30 anos no comando da Casa Ermelinda Freitas – a segunda maior vinícola em vendas de varejo em Portugal, Leonor se orgulha de ter colocado a região no mapa e mostrado o valor das uvas locais, como a Castelão, claro.
Como foi a chegada da senhora ao mundo dos vinhos?
A minha vida sempre foi ligada ao mundo rural, concretamente aos vinhos e às vinhas. Eu nasci aqui. Era uma casa agrícola, fundada em 1920, que tinha vários produtos e foi crescendo e ficando só com as vinhas. Sou da quarta geração, portanto, isso vem ao longo das gerações. Crescemos humildemente com muito trabalho, muita dedicação e muito amor à terra.
Por que a empresa é centrada nas mulheres da família?
De fato, os homens da família morreram muito cedo. Isso é um mero acaso e azar. Foram as mulheres que conseguiram sempre agarrar a casa agrícola e mantê-la. Muito guerreiras, muito decididas. O homem que esteve mais tempo foi o meu pai, com a minha mãe. Mas também faleceu relativamente cedo. Sou filha única e os meus pais queriam uma vida melhor para mim, com mais conhecimento. Estudei em Lisboa e não me preparei para vir para o mundo rural.
Em que contexto se deu o retorno da senhora à vinícola?
O meu pai faleceu e eu resolvi vir ajudar a minha mãe. A Dona Ermelinda. A nossa história era de vinho a granel. Tínhamos 60 hectares de vinha e produzíamos duas qualidades de uva: Castelão para os tintos, Fernão Pires para os brancos. Comecei a sentir necessidade de fazer marcas e vi que tínhamos que ter uma variedade grande de castas. Merlot, Syrha, Cabernet, tínhamos que ter essas castas para que depois conhecessem o nosso Castelão. Comecei a plantar a Touriga Nacional e hoje temos 30 qualidades de uva em 560 hectares. O nosso grande objetivo é termos vinhos para todos os clientes e para todos os momentos, desde os de entrada até os de luxo.
Como se deu essa virada?
Foi na ida a Bordeaux [França] que entendi que eu tinha um produto e que tinha que valorizar. Conheci um enólogo de Portugal, o Jaime Quendera, e o convidei para vir trabalhar comigo. Havia um enólogo na casa, mas era da idade do meu pai, sentia que não conseguia evoluir. Percebi o entusiasmo do Jaime e isso ajudou muito, porque éramos duas pessoas entusiasmadas iniciando um novo percurso. Ele era uma pessoa nova, com conhecimentos novos, que veio mudar muita coisa e contribuir para a região evoluir muito na enologia e na viticultura. E ainda hoje ele trabalha conosco. Depois fui visitar os chateaus e vim de lá com a ideia de que tinha que fazer uma adega nova – era tudo na casa da minha mãe – e tínhamos que ir para as marcas. É aí o grande salto que começa. É claro que as pessoas punham muitas dúvidas quando começavam a ver essa revolução de quem não esperavam. Falavam que não ia dar certo, que ia haver falência e que eu ia vender. Aliás, apareciam várias pessoas para comprar. Essa era uma das coisas que mais ofendiam a mim e a minha mãe.
O que a senhora fez para driblar a desconfiança?
Fugia das pessoas que estavam desanimadas. Estava muito focada e muito entusiasmada, não podia desanimar. Acho que valeu a pena o meu otimismo. Isso é uma coisa que ultrapasso sempre com um sorriso, com um arredondar dos espinhos da rosa, como costumo dizer, com trabalho e com honestidade. Sempre estive muito bem comigo própria e isso ajudou.
Como é para a senhora ver que conquistou respeito e uma posição de destaque?
A força veio sobretudo do amor que a família me passou à terra. Uma das características das mulheres é a persistência e foi essa persistência, escolher as pessoas certas para trabalhar, não desistir, foi muitas vezes falar comigo: “Não é por ser mulher que não vai levar o projeto da tua família para a frente”. Houve algumas dificuldades pelo fato de ser mulher. Nós comprávamos uvas e um senhor dizia: “Não faço negócios com mulheres”. Era eu que estava aqui, porque o meu marido continuou sempre na sua vida profissional. Mas as pessoas andavam sempre à procura dele. Ele dizia: “Não sei de nada disso e ainda por cima não gosto de negócio”. Isso ajudou muito, porque, de fato, foi um reforço. Não há dúvida, teve que haver uma grande firmeza e a mudança tem que ser nossa. A margem para falhar era muito pouca e eu tive muita preocupação de não falhar. Trabalhava muito, queria muito não falhar.
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Quais são os desafios hoje de cultivar uvas e fazer vinhos?
Acho que a viticultura vai ter que dar um grande salto. Cada vez temos menos pessoas para trabalhar no campo. As condições climáticas estão cada vez mais agressivas e nós temos que aplicar as tecnologias, a inteligência artificial, possivelmente, também nas vinhas. Na adega, já estamos muito mais avançados. Tivemos uma experiência há pouco tempo com drones. Os drones acabam por fazer fertilizações. É para substituir um pouco o trator. Ele ainda não está autorizado, mas já é um princípio. Pensando nas mudanças climáticas, vamos fazer uma pequena experiência com plantas mais resistentes. Acredito que vai ser um futuro, mas ainda não está sequer autorizado. Na adega, o desafio é melhorar cada vez mais, oferecer cada vez mais produtos diferentes, ir ao encontro do cliente, sentir que ele está contente. Nada está ganho.
Por qual vinho a senhora mais tem carinho?
São como meus filhos, é difícil. O que todos têm é uma história e uma afetividade. Todos eles significam algo para a família. O Dona Ermelinda é uma homenagem à minha mãe. Dom Campos é pelo sobrenome do meu marido. Leo D´Honor é o meu nome disfarçado. O nosso produto de luxo se chama Destemido e é uma homenagem ao meu pai, porque acho que ele era um homem destemido. O Terras do Pó é porque estamos aqui, em Fernando Pó, são terras de areia. Tudo isso para dizer que, quando fazemos um rótulo, é mais do que um vinho. Ele tem o afeto que nós colocamos, tem o trabalho das pessoas da vinha e da adega. Representa toda uma cultura da região, da família, dos nossos trabalhadores e de Portugal. Sinto-me sempre muito orgulhosa de ser portuguesa, de ser de Fernando Pó. Costumo dizer que sou tão rural que nem para o hospital fui nascer. Tenho muito orgulho da nossa região, de Portugal e da qualidade dos vinhos que temos.
Do que a senhora mais se orgulha de ter feito nesses 30 anos?
Não ter deixado cair o trabalho das gerações anteriores, de ter dado continuidade a quem tanto trabalhou. Tenho dois filhos e a Joana vai dar continuidade na quinta geração. Outra mulher. Ela já está aqui como diretora geral. O João é informático e também trabalha aqui. É um orgulho dar continuidade, ter posto esta localidade no mapa e contribuído para a Península de Setúbal ser mais conhecida.
De onde veio o “título” de Senhora do Castelão?
Tenho castelões muito antigos que vêm da família. O mais antigo tem 72 anos. Portanto, como tenho castelões muito bons, continuo a dizer isso.