Nem tudo é moscatel: região de Setúbal investe em outras uvas portuguesas
Embora o Moscatel seja o produto mais vendido da Península de Setúbal, em Portugal, a região é muito conhecida pelas uvas tintas, em especial, a Castelão
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Setúbal – Quando se fala em Setúbal no mundo dos vinhos, automaticamente vem à cabeça o nome Moscatel. A uva realmente deixou famosa a região ao Sul de Portugal, a cerca de 50 quilômetros de Lisboa. Mas não é só ela que dá identidade à península onde se concentram viticultores e vinícolas. Há quem se dedique a apresentar outras castas de um terroir único, que fica entre rios e próximo ao mar.
Moscatel, na verdade, é um conjunto de mais de 200 variedades de uvas. Há indícios de que tenha surgido na região do Mediterrâneo, possivelmente Egito, e se espalhou pelo mundo ao longo dos séculos. Estudos mostram que a Moscatel de Alexandria é a que deu origem à Moscatel de Setúbal, uma casta branca também chamada de Moscatel Graúdo.
Na Península de Setúbal, virou tradição transformar a uva em vinho fortificado, chamado assim devido à adição de um destilado. “Nós não deixamos que a fermentação comece e que as leveduras transformem o açúcar do mosto em álcool. E como fazemos isso? Adicionando álcool, portanto, inibindo-as”, explica Joana Vida, da quarta geração da Venâncio da Costa Lima, fundada em 1914 em Palmela.
Isso resulta em uma bebida mais doce e com maior concentração alcoólica – no caso dessa vinícola, uma média de 160g de açúcar por litro e 17% de teor alcoólico. É o mesmo que ocorre na produção dos vinhos do Porto e da Madeira, também portugueses, o espanhol Jerez e o italiano Marsala.
Muitas pessoas perguntam: “Vocês põem açúcar?” E eles respondem: “Não, nós colocamos álcool e conservamos o açúcar natural da uva”, explica a gerente da Venâncio da Costa Lima. A ideia, segundo ela, é sentir dulçor e o aroma intenso da maceração prolongada que ocorre durante o inverno. As uvas são colhidas em setembro e ficam mais ou menos seis meses em contato com o álcool para transferir seus aromas e sabores. Assim como se faz uma infusão de chá.
A acidez também deve estar presente. “O Moscatel de Setúbal é sempre doce. Mas o segredo para nós é o equilíbrio entre a acidez e a doçura. Se ele for só doce, vocês vão tomar um shot e enjoar no primeiro gole”, pontua. Essa característica específica tem a ver com o momento de colheita das uvas.
Na visita à Venâncio da Costa Lima, que oferece provas de vinhos na sua antiga adega, dá para beber perfis diferentes do Moscatel de Setúbal, dos mais jovens aos envelhecidos, que podem ser servidos como aperitivo, para acompanhar sobremesas ou digestivo.
Lá, os rótulos partem de dois anos (o mínimo, pela lei, são 18 meses), com sabor mais fresco, que lembra chá, e chegam aos 30 anos (25 só em barrica de carvalho francês), mais puxado para frutas secas. Esse rótulo foi lançado para celebrar o centenário da adega.
Canto gregoriano
Produtora de Moscatel de Setúbal desde 1834, a adega José Maria da Fonseca, em Vila Nogueira de Azeitão, já na sétima geração, guarda safras centenárias. As mais antigas são de 1880, mas fazem parte da coleção privada da família fundadora. Para venda, eles disponibilizam garrafas a partir de 1918, que são verdadeiras relíquias.
Os Moscatéis ficam armazenados em um edifício de 1775, que funcionava como fábrica de uniformes, por isso o nome Adega dos Teares Velhos. Em um ambiente escuro, onde são preservadas até as teias de aranha, eles “ouvem” canto gregoriano o dia inteiro. A ideia é que a bebida envelheça por mais tempo possível, praticamente até o barril de carvalho aguentar.
Diferentes barris
Já na Quinta do Piloto, em Palmela, a idade não é o principal atrativo dos Moscatéis. Como começou a engarrafar depois da maior parte das adegas da região (a venda, até então, era a granel), Filipe Cardoso, da quarta geração, decidiu envelhecer a bebida em barricas por onde passaram outros destilados. Entre eles, conhaque, rum, tequila, uísque e aquavit.
“O espírito dessas bebidas está impregnado nos poros da madeira e, quando colocamos o nosso Moscatel, acaba dando um gosto e uma autenticidade diferentes.” No ano passado, a vinícola lançou o primeiro Moscatel que fica 100% em barrica de uísque, com aroma floral e toque de especiarias.
Cor roxa
Setúbal preserva uma variedade rara e preciosa de Moscatel, o roxo, que ganhou esse nome pela cor, entre a branca e a tinta. Pensa-se que tenha surgido através de mutação genética ou de enxertias ao longo dos tempos. A casta esteve quase extinta, por ser muito difícil de cultivar, mas voltou a ser plantada na última década, ainda que em pouca quantidade. A região se orgulha de, atualmente, reunir 56 hectares.
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Tradicionalmente, o Moscatel Roxo também é usado para fazer vinho fortificado, mas hoje em dia também aparece em vinhos tranquilos (sem adição de gás carbônico ou álcool). Como exemplo, o branco da Adega de Palmela, fundada em 1955 por um grupo de viticultores da região e que hoje detém cerca de 1000 hectares, o que corresponde a 15% das vinhas da região.
A vinícola prova que é possível produzir um vinho seco com uma uva muito concentrada em açúcar e que ele tem potencial gastronômico, ou seja, pode fazer companhia para a comida à mesa. O rótulo da Adega de Palmela, com sabor fresco, aroma floral e de frutas tropicais, acompanha bem comidas picantes, como curry tailandês e o português camarão ao piri-piri.
A rainha das uvas
Embora o produto mais vendido seja o Moscatel, a região é muito conhecida pelas uvas tintas. Nesse contexto, destaca-se a Castelão, considerada a rainha de Setúbal. Atualmente, é a terceira casta mais plantada em Portugal (já foi a primeira), sendo encontrada de uma ponta à outra. Porém, é na península onde ela se desenvolve com mais expressão. Seria o mesmo que dizer que é na região de Bordeaux, na França, onde a Cabernet Sauvignon, plantada no mundo inteiro, transmite mais qualidade.
A uva ficou muito famosa no Brasil através do vinho Periquita, da José Maria da Fonseca, uma das vinícolas mais antigas de Portugal. A empresa, inclusive, se orgulha de dizer que os brasileiros começaram a tomar vinho graças a esse rótulo. As primeiras exportações para a ex-colônia foram em 1910 e continuam a ser bastante expressivas.
O homem por trás da empresa era formado em matemática e cuidava dos negócios do pai. Como a maior parte das pessoas pagavam as dívidas com vinhas e terrenos, o filho se interessou pelo mundo dos vinhos. Foi para a França estudar e voltou em 1834 para fundar a vinícola.
O Periquita ficou famoso por ser o primeiro vinho tinto engarrafado e registrado em Portugal. Isso foi em 1850. O nome vem de Cova da Periquita, “quinta” (propriedade rural) onde a família plantava Castelão, a uva principal desse rótulo (que se soma a Trincadeira e Alicante Bouschet). Depois de seis meses em barris novos de carvalho francês e americano, a bebida ganha aroma de mirtilo e ameixa preta.
Puro castelão
O Castelão teve seu reinado ameaçado com a chegada de uvas estrangeiras e chegou a ficar esquecida na região. Há 10 anos, três enólogos, inconformados, uniram-se para um lançamento marcante.
“Era como se fosse um murro na mesa para mostrar que o Castelão podia ser um grande vinho e a verdadeira bandeira da região. Uma espécie de um grito do Ipiranga para dizer: 'o Castelão é mesmo uma grande casta, vamos acreditar nisso'”, conta José Caninhas, fundador da vinícola Trois, ao lado de Filipe Cardoso e Luís Camões, que está perto de inaugurar uma adega-escola.
Apesar das desconfianças e críticas, o trio insistiu no vinho 100% Castelão e hoje colhe frutos. “Castelão é uma casta mal-amada e utilizada para vinhos de base. Para os topos, vamos buscar Syrah, Cabernet Sauvignon e outras que vêm de fora. Mas temos algumas castas que já estão aqui há séculos e devem ser a espinha dorsal da região”, defende Filipe.
À moda antiga
Isso é o que guia o trabalho do enólogo tanto na Trois quanto na Quinta do Piloto, que herdou da família. O nome vem do primeiro dono da quinta, que era o piloto-mor de Portugal no comércio com as Índias. Seu bisavô comprou essas terras no início dos anos 1900 e plantou uvas, mas foi dele a decisão de começar a produzir vinhos engarrafados e levantar a bandeira do Castelão, tanto que a uva representa 75% da produção em 200 hectares.
Parte da adega é quase um museu vivo. Tudo funciona à moda antiga, como era feito pelo bisavô, seguindo o sistema de ânfora argelina. As uvas entram na parte superior de enormes recipientes de barro, fermentam e saem impulsionadas pela gravidade. “É um sistema de fermentação que funciona muito bem para o Castelão, porque é uma casta com alguma dificuldade de tirar cor e aqui conseguimos fazer uma super extração”, explica Filipe.
A Quinta do Piloto surpreende usando a uva para produzir um espumante através do método clássico francês champenoise, em que a fermentação ocorre dentro da garrafa para criar borbulhas. “É uma prova de que o Castelão não só faz bons vinhos tintos, mas também outros produtos de grande qualidade.”
Mais qualidade
Hoje é comum encontrar na região vinhos 100% Castelão. Isso tem sido incentivado, inclusive, com a nova categoria “Castelão Extreme”, criada pela Comissão Vitivinícola Regional da Península de Setúbal (CVRPS) para preservar e valorizar as vinhas velhas da casta.
Entre eles, está o da Adega Camolas, em Palmela. Assim como outras vinícolas, sua história começou há 25 anos com venda a granel em “bag in box”. Ou seja, importava mais quantidade. Com o tempo, a empresa fez o movimento de investir em mais qualidade. “Trabalhamos muito pouco com castas estrangeiras. Faz parte da nossa política valorizar as castas portuguesas”, pontua a enóloga Sara Nunes.
A Adega de Camolas é conhecida por ser a vinícola com maior área de vinhas velhas de Castelão – as mais antigas são de 1931. Produzem menos uvas, porém, mais concentradas. Essas videiras quase centenárias aparecem em alguns rótulos, como o de uma edição comemorativa que passa 24 meses em barricas carvalho francês ou carvalho americano e quatro anos em garrafa e ganha aromas com notas de fruta madura, compota, geleia e especiarias.
Também chama a atenção o rosé 100% Castelão com notas florais e um toque de morango.
Base dos tintos
Ao Sul da Península de Setúbal, A Serenada preserva vinhas de castelão de 1961, quando o veterinário António Gomes Sobral, que viveu da exploração da cortiça, decidiu plantar uvas. Sua filha, a farmacêutica Jacinta Sobral da Silva, assumiu os negócios e de 2008 a 2019 aumentou a plantação, que hoje está em sete hectares. “Tenho orgulho de ter um Castelão antigo”, diz.
A casta é a base de todos os vinhos tintos da adega, desde o monovarietal (quando se usa uma única variedade de uva) até os blends. “Escolho primeiro as monocastas e depois faço o melhor lote com as outras quantidades que sobram”, informa.
O rótulo 100% Castelão mistura 40% de vinho em barrica nova de carvalho francês e 60% em inox por 12 meses, o que faz realçar notas de fruta negra, noz, toques defumados e folha de azeitona.
De olho nos blends
A Bacalhôa também aposta em blends com castelão. A degustação ocorre no deslumbrante Palácio da Bacalhôa, na Vila Nogueira de Azeitão, construção do século 15 que foi casa de férias da família real portuguesa e teve vários proprietários ao longo dos séculos. Dizem que um deles tinha o apelido de “Bacalhau”, porque comercializava o peixe, e sua mulher ficou conhecida como “Bacalhôa”.
A marca Catarina homenageia Catarina de Bragança, mulher do rei Carlos II, que foi princesa de Portugal e rainha da Inglaterra. Foi ela quem introduziu os talheres e o chá na corte. O Castelão se junta à Cabernet Sauvignon para criar um rosé com aromas de morango, amora e violeta e forma dupla com a Alicante Bouschet (25% da mistura estagiam em barricas de carvalho francês por 12 meses), revelando notas de frutas vermelhas com nuances tostadas e abaunilhadas.
Mudança de consumo
Se o Castelão reina entre as uvas tintas na Península de Setúbal, a Fernão Pires, conhecida em outras regiões como Maria Gomes, é a protagonista no grupo das brancas. A uva portuguesa passou pelo mesmo drama de ser relegada aos vinhos de baixa qualidade. Mas isso também vem mudando.
“Aqui na região se dizia muito que a Fernão Pires era só para vinhos baratos, que não evolui bem, que falta acidez. Só encontravam defeitos em uma casta que chegou a ser a branca mais plantada em Portugal. Isso tinha muito a ver com não saber trabalhar com elas. Quando colhida na altura certa, tem longevidade e acidez. E isso caracteriza muito a nossa região”, comenta o enólogo Luís Camões, que se divide entre a Trois e a Sociedade Vinícola de Palmela.
Na Trois, destaque para um rótulo 100% Fernão Pires que passa 12 meses em barris novos de carvalho e fica com notas florais, de ervas e frutos secos e para um blend com sete uvas brancas portuguesas (Fernão Pires, Arinto, Antão Vaz, Alvarinho, Trajadura, Encruzado e Perrum). A colheita delas ocorre em época de maré alta e, como as vinhas estão muito perto do mar, ficam com uma camada de sal, o que confere ao vinho uma interessante salinidade.
Um dos vinhos da Sociedade Vinícola de Palmela apresenta a acidez e o frescor do Oceano Atlântico, combinando as castas Arinto e Fernão Pires. A inspiração vem de um poema que o lisboeta Sebastião da Gama escreveu para a Serra da Arrábida.
Relação com o mar
Em linha reta, a Quinta Brejinho da Costa, localizada em Grândola, fica a três quilômetros do litoral. Logo, seus rótulos têm muita influência do oceano, e não só pela presença de salinidade no paladar. As garrafas da marca Vinhos do Atlântico são envelhecidas, literalmente, no fundo do mar. Nesse período, os corais grudam no vidro e formam desenhos únicos.
“A evolução do vinho é muito mais rápida. Um ano no mar equivale mais ou menos a dois anos em cava”, aponta a engenheira agrônoma e enóloga da vinícola, Marta Rosa. Mas o resultado nunca é igual. Em alguns casos, os vinhos brancos ficam mais suaves em termos de acidez. Em outros, essa característica se intensifica no mar. O Vinho do Atlântico branco une as castas Arinto, Alvarinho e Encruzado.
Aos interessados, a vinícola oferece um passeio para mergulhar e buscar uma garrafa no fundo do Atlântico.
E a mão de obra?
O agricultor e enólogo da Adega dos Pegões João Marujo conta que tem havido um aumento do consumo de vinhos brancos, o que os leva a apostar mais nas castas brancas, que hoje correspondem a 30% da produção. Além da Fernão Pires, eles investem, por exemplo, em Verdelho, Arinto e Antão Vaz. Mas esse não é um trabalho rápido, já que uma vinha leva de três a quatro anos para se tornar produtiva. Fora o desafio da mão de obra no campo.
Fundada em 1958, a Adega de Pegões reúne 100 agricultores que somam cerca de 1100 hectares de vinhas. Há cada vez menos jovens agricultores e são os estrangeiros (como indianos, paquistaneses e nepaleses) que acabam ocupando esse lugar. “A falta de mão de obra tem sido um problema severo e todos os associados, quer queiram quer não, estão sendo obrigados a mecanizar o plantio, a colheita e a poda também.”
João é uma exceção no mundo dos vinhos. Desde novo, tem uma paixão pelo campo e herdou as terras diretamente do avô (a mãe e a tia não quiseram assumir). Aos 26 anos, ele é o agricultor mais novo da associação. “É uma paixão que nasce com a pessoa. Possivelmente, se eu tivesse ido para a cidade de pequeno, não ia gostar da agricultura. Trabalhamos muito e investimos muito dinheiro sem saber se vamos colher. A agricultura é assim, num ano ganha, no outro perde. Você tem que estar preparado.”
Condições climáticas
Setúbal tem solo arenoso e amplitude térmica que favorece o cultivo de uvas. No verão, os dias são quentes. Mas, como está entre os rios Tejo e Sado e próxima ao Oceano Atlântico (o que explica chamar de península), as noites são frescas. A área também se beneficia do clima ameno da região montanhosa da Serra da Arrábida. O calor estimula o acúmulo de açúcares, enquanto o frio mantém a acidez das uvas.
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Certificação em massa
Quase 90% dos vinhos produzidos na região são certificados pela Comissão Vitivinícola Regional da Península de Setúbal (CVRPS). Existem três classificações de Denominação de Origem (DO) e Indicação Geográfica (IG): DO Palmela; DO Setúbal (apenas para Moscatéis de Setúbal e Roxo de Setúbal) e IG Península de Setúbal. Essas certificações garantem a qualidade dos vinhos que chegam aos consumidores.
*A jornalista viajou a convite da Comissão Vitivinícola Regional da Península de Setúbal (CVRPS)