Literatura é missão de vida de Ana Maria Machado, homenageada no Flitabira
Aos 83 anos, escritora faz questão de 'pisar no chão do Brasil', visitar cidades e conversar com o leitor
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Itabira – Ana Maria Machado já chega avisando: “Se a entrevista for só sobre literatura infantil, eu tô fora”. Não se trata de desmerecer o gênero em que se consagrou há décadas, “mas é porque a literatura infantil é só uma parte da minha vida. Eu tenho outras produções também”, afirma.
Além de centenas de títulos infantis traduzidos para mais de 30 países – reconhecidos, inclusive, pelo aclamado Prêmio Hans Christian Andersen –, a escritora e professora carioca, de 83 anos, tem vasta produção de romances, contos e ensaios não necessariamente para crianças.
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Reconhecida como Personalidade do Ano pelo Prêmio Jabuti na última segunda-feira (27/10), Ana Maria veio a Minas receber homenagem em Flitabira, festival literário da terra de Carlos Drummond de Andrade.
“Faço muita questão de ir a cidades diferentes, pisar no chão do Brasil, conversar com leitor, ver tudo isso”, ressalta.
Médica de planta
Ocupante da cadeira nº 1 da Academia Brasileira de Letras (ABL), Ana Maria Machado já quis ser agrônoma. Ou “médica de planta”, como dizia, ainda menina.
“Eu tinha um tio agrônomo e adorava. Mas o tempo foi passando, comecei a ler cada vez mais, acabei virando professora de letras e escrevendo.”
Ela aproxima esses dois universos tão distintos no sugestivo “Uma vontade louca” (Global), livro que acompanha Jorge e Mariana. Ele, racional e interessado em ciências, apaixonado por dinossauros; ela, sonhadora, fascinada por mitologia.
Os dois se conhecem, mas não encontram interesses em comum, o que dificulta a comunicação. Com o tempo, porém, as diferenças dão lugar ao entusiasmo e ao amor.
A confluência entre fantasia e realidade, quase sempre permeada por referências a clássicos da literatura, é recorrente nas histórias da escritora. O denso “Alice e Ulisses” narra o encontro entre mulher recém-separada, disposta a se aventurar por novos caminhos, e um cineasta casado, preso ao relacionamento de aparências.
Assim como o Ulisses de Homero, o personagem parte para arriscada jornada com a certeza de que voltará para casa e encontrará a esposa à espera. Já a Alice brasileira remete a protagonista célebre de Lewis Carroll, em sua busca por um mundo mágico e, de certo modo, perigoso.
As alusões literárias também estão presentes nas obras para as crianças. “Meu reino por um cavalo” dialoga com “Ricardo III”, de Shakespeare. O título vem da fala do próprio personagem que dá nome à peça do autor inglês. “A criança não vai fazer essa associação, mas a ficha vai cair em algum momento, quando ela crescer”, aposta Ana Maria.
A escritora recorda episódio que ilustra bem essa percepção: “Um dia, estava visitando uma escola em Petrópolis e falando sobre meu livro ‘A história meio ao contrário’. Tinha um menino de pé, junto da porta, parado, assistindo. Quando terminei, ele perguntou se podia falar. A professora deixou. Aí ele disse: ‘Queria dizer que eu me amarro em livro assim, como o seu, porque, quando a gente cresce, ele cresce com a gente’”.
Família
Muitos dos temas e, principalmente, a forma de narrar de Ana Maria têm origem na tradição oral de sua família. É a mais velha de 11 irmãos, com sobrinhos, sobrinhos-netos e parentes espalhados por diferentes cidades do Brasil.
Decimais e galinheiro
Do avô materno, professor, engenheiro, físico e ex-reitor de universidade capixaba, ela herdou o gosto pelo raciocínio lógico e o rigor científico. Da avó, que só aprendeu a ler depois de se casar, veio o encanto pelas narrativas orais.
“Tive o privilégio de conviver com duas riquezas culturais muito diferentes. Desde o meu avô, que cobrava da gente fazer certinho a divisão de decimais, até as coisas mais simples da minha avó, como ir ao galinheiro para ver qual galinha botaria ovo naquele dia”, revela Ana Maria.
Viajando pelo país para participar de eventos, Ana Maria mantém a disciplina. Escreve todos os dias, mesmo que nada do que produza venha a ser aproveitado.
“A força da literatura é nos mostrar como nós somos iguais a tanta gente no mundo”, reflete. “Nós somos idênticos a tantas outras pessoas e, ao mesmo tempo, cada um é tão singular. A literatura nos joga nesse confronto de ver semelhanças e, ao mesmo tempo, identidade própria em gente de qualquer idade”, conclui.
FLITABIRA
Até domingo (2/11), no Teatro da Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade (Av. Carlos Drummond de Andrade, 666, Centro, Itabira). Entrada franca. Programação completa no site do evento.
* O jornalista viajou a convite do Flitabira