O que permanece quando ninguém vê?
O amor tem uma gramática própria, repleta de demora, enigma e hesitação
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Desde que o jogador Vini Jr. e a influencer Virgínia começaram a se aproximar, até mesmo quem não queria começou a ter acesso a todos os detalhes da relação. Em menos de um mês, já houve traição por parte dele, pedido de namoro com direito a flores e cama decorada, e até mesmo campanha publicitária estrelada pelo agora casal. Essa espetacularização da vida privada não é destinada apenas aos famosos: não são poucos os casais que se cobram mutuamente sobre postagens um com o outro em redes sociais, como se sem a exposição o amor nem existisse.
Mas será que o amor, que sempre significou a fala baixinha entre dois, quando convocado para o centro do palco, resiste a essa exposição? Em seu livro, Fragmentos de um Discurso Amoroso, Roland Barthes, pensador francês, nos ensina muito sobre o cuidado necessário à relação amorosa. Segundo o autor, o amor tem uma gramática própria, repleta de demora, enigma e hesitação, que só encontra seu verdadeiro sentido quando tratado de modo privado. Para ele, quando transformamos nossa experiência íntima em anúncio, ela muda completamente de natureza: de alimento para o espírito para mera performance para o público.
O amor postado deixa de ser intimidade, ele sofre a pressão pela resposta do público, já que no mundo digital todas as fotos pedem legendas, toda legenda, aprovação e, toda aprovação, repetição. E assim, o amor, que em seu significado mais genuíno é o compartilhamento da vida a dois, se torna algo a ser julgado pelos olhos atentos – ou não – daqueles que nos seguem. Nesse cenário, as curtidas e os comentários de pessoas que às vezes nem nos conhecem direito, muitas vezes, se tornam um parâmetro para avaliarmos o que realmente estamos vivenciando.
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Quando precisamos postar o amor, quando ele precisa ser visto para existir, é sinal de que nossa intimidade já foi colonizada e já nos tornamos produtos para ser consumidos pelo público. Amar de modo silencioso, sem testemunhas, fotografias ou textões públicos é um ato de rebeldia que resgata o amor do palco e o devolve para a cena íntima do casal. Exposto de modo desmedido o amor deixa de ser amor e se transforma em função, pois é preciso alimentar a plateia.
A reserva, que é condição para a manutenção da vida privada, nos ensina que nem tudo precisa ser dito ou exposto na vitrine das redes sociais. Quando preservamos um pouco de sombra, devolvemos ao vínculo amoroso a dimensão que o excesso de luz consome. Sem essa zona de proteção, tudo vira cartaz, cada gesto vira prova, cada palavra vira prestação de contas e o afeto se transforma em moeda simbólica.
Aos mais desavisados, minhas palavras podem soar como um discurso moralista (moralizante), no entanto, longe disso, o que estou discutindo é o quanto estamos expondo aquilo que nos é mais íntimo em troca de curtidas e comentários que acrescentam muito pouco à relação e, às vezes, pode até mesmo prejudicá-la.
Não estou defendendo que não devemos postar nada sobre o amor que nos cerca, mas que devemos ter o cuidado de nos perguntarmos se a fotografia tem uma função ou se ela simplesmente reflete carinho e ternura. Se o gesto mirar meu parceiro amoroso, isso alimenta nossa história, mas se é para alimentar a plateia, o gesto é para quem postou a imagem. O amor que se basta se perfaz na presença e não em um gesto que tem por finalidade fazer com que as pessoas nos percebam.
Amar sem testemunhas é uma forma ética de cuidar do amor, protegendo o outro do uso público de sua imagem e o amor da erosão do exibicionismo. Há delicadezas que murcham na luz do feed, pois seu valor só se consolida no trabalho contínuo dos dias sem anúncio.
O gesto que precisa do mundo para existir não pertence necessariamente ao amor, o que traz o pertencimento é sua sobrevivência sem testemunhas, único espaço que sua gramática demorada, enigmática e hesitante se apresenta em sua forma mais pura.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
