Juraciara Vieira Cardoso
Juraciara Vieira Cardoso
Professora da UFMG, graduada em Direito, mestre em Direito Constitucional e doutora em Filosofia do Direito
VITALidade

Dividir para governar: quando a violência se torna estratégia política

A tática de dividir facções fortalece o poder, mas pode corroer a democracia quando se transforma em violência política

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Um conselho, contido no livro O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, que foi escrito no século 16, parece mais atual do que nunca. A obra, direcionada aos governantes, é um conjunto de conselhos práticos e nada ortodoxos sobre como conquistar, manter e exercer o poder. O conselho que quero chamar atenção é aquele no qual o autor afirma que o príncipe deve manter as “facções” divididas, pois essa divisão o fortalece. Nessa lógica, quanto mais divisão interna, maior seria o poder do príncipe. No entanto, Maquiavel alerta que o príncipe não pode dividir demais a nação, pois isso geraria ódio e instabilidade social.

Por exemplo, a violência que passou a marcar a política nos Estados Unidos nos últimos anos é assustadora e escala a cada dia. O recente assassinato do ativista de direita Charlie Kirk, semana passada em Utah, além da morte da ex-deputada estadual democrata, Melissa Hortman e de seu marido Mark Hortman e do ferimento no senador John Hoffman e sua esposa, mostram que as rivalidades ideológicas foram infladas a um ponto quase inacreditável para quem viveu o idealismo da paz perpétua. Esses não foram atos isolados no mundo. No Brasil temos o assassinato de Marielle Franco e a tentativa de assassinato do ex-presidente Jair Bolsonaro, demonstrando que a violência política também já chegou por aqui.

O mais grave é perceber que tais ações são insufladas por pessoas que detém o poder e as usam como um meio de se manterem no poder. A estratégia usada por certas forças políticas para se manter no topo é criar um clima de hostilidade e de antagonismo, de modo que outro lado pareça não apenas errado, mas uma ameaça à nossa própria existência. O medo que é produzido pela violência supostamente praticada pelo outro grupo funciona como um instrumento que unifica o grupo, isola o grupo rival, legitima medidas de segurança excessivas, endurece discursos de ódio e sanciona retaliações contra inimigos, já que nessa lógica, o outro, que é apenas alguém que pensa diferente de mim, passa a ser demonizado.

O ambiente resultante é de ultra responsabilização dos adversários e quase nenhuma responsabilização daqueles que fazem parte do grupo, polarização midiática e discursos que instalam uma radicalização injustificada, usando as nossas diferenças, que foram tão glorificadas no século 20, para nos desunir e não como pontes para criarmos diálogos construtivos. Isso ocorre em meio a um clima de constante suspeita do outro, no qual passa a ser do meu interesse a posição política do meu vizinho, como se eu tivesse a responsabilidade de o denunciar para que eu não me torne cúmplice dele, numa lógica Gestapo.

 

Como estratégia de poder, quando um governante divide seu povo ele impede que esse povo se una contra ele e garante que ele será necessário para mediar as disputas que, lembrem-se, foram criadas por ele. Desunido, o povo é fraco e incapaz de se voltar contra os arbítrios daqueles que exercem o poder, o que é sinônimo, para o governante, de mais poder. Construímos nossas bolhas - nas quais não é bem-vindo ninguém que pense diferente de nós - e com elas aprofundamos a desunião racial, cultural e ideológica, isso para dizer o mínimo.

Lembremos que no início do texto, Maquiavel alertava ao príncipe que não usasse tal instrumento de modo demasiado, pois isso levaria ao caos social. A violência política pode até funcionar por um tempo como instrumento de poder, mas mais cedo ou mais tarde ela se volta contra o próprio governante e contra a sociedade como um todo. Quando as divisões se aprofundam além do limite tolerável, deixam de ser uma tática e se tornam uma ferida social aberta, que corrói lentamente as bases da vida comum e nos transforma em inimigos.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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