
Uma nova forma de permanecer
A vida que há em cada um de nós pode ser muito mais extensa do que nosso próprio corpo
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Desde tempos imemoriais, devolvemos nossos mortos à terra com reverência e cuidado. Alguns povos cremavam seus entes queridos e lançavam suas cinzas ao mar. Outros, após longas orações e cantorias, os envolviam em folhas e mantos e os enterravam em covas rasas para que retornassem o mais depressa possível à natureza. Em comum, a compreensão de que o corpo, uma vez destituído da alma, deveria retornar ao mundo, não como descarte, mas como oferenda, a fim de que pudesse se tornar algo diverso, no eterno ciclo da vida.
Com o tempo e à medida que as cidades se expandiram e as formas de organização social se sofisticaram, também os modos de lidar com a morte foram sendo reformulados. No Brasil, o primeiro cemitério público foi a Fundação Campo Santo, em Salvador (BA), inaugurado apenas em 1836. Antes disso, as pessoas mais destacadas da sociedade eram enterradas nas igrejas ou santuários e, os demais, em locais esparsos nos arredores da comunidade. Em Belo Horizonte, o primeiro cemitério público foi o do Bonfim, inaugurado no ano de fundação da cidade e serviu para abrigar os mortos daquela que foi projetada para ser a nova capital do estado.
Ao trocarmos a singela oferenda à terra por lápides esculpidas em mármore, substituímos o gesto ancestral de retorno à terra pelo desejo moderno de permanência. A morte, que era um gesto simples de reintegração do corpo sem vida à natureza, passou a ser administrada pelo urbanismo e pelo culto da memória formalizada de um morto que, de algum modo, deseja se fazer presente entre os vivos. É como se, na rigidez da matéria, travestida de grandes monumentos fúnebres, depositássemos nossas esperanças de sobreviver à morte.
Esse desejo de permanência não é só arquitetônico, mas existencial. É comovente esse nosso desejo de permanecer, mesmo depois do fim, mas ele escancara a angústia que temos diante da finitude. A construção de um túmulo com o nosso nome, que ultrapasse o tempo, é uma maneira simbólica de fixar nesse mundo algo de nós mesmos, uma espécie de garantia de que estivemos por aqui. Os cemitérios, com sua estética da eternidade, são a materialização do nosso impulso ancestral de permanecer, ainda que saibamos que essa marca que hoje deixamos, cedo ou tarde, será coberta pela poeira, pelos matos ou pelo esquecimento.
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Talvez por reconhecer os excessos simbólicos e materiais da morte moderna, surgem pelo mundo iniciativas que propõem outros caminhos. Uma delas é proposta pelos designers italianos Raoul Bretzel e Anna Citelli. O objetivo é, por um lado, apresentar uma proposta ambientalmente mais viável do que os sepultamentos comuns e, por outro, repensar o nosso ritual de adeus. No projeto, chamado de Capsula Mundi, o corpo – ou as cinzas - é colocado em posição fetal dentro de uma cápsula biodegradável em forma de ovo, e sobre ele é plantada uma muda de árvore.
O corpo morto vira humus, alimenta a árvore, ela cresce e, assim, a morte, finalmente, é reintegrada ao ciclo da vida. A ideia, de grande sensibilidade humanística e social, está se espalhando ao redor do Brasil. Em Nova Lima, a menos de 30 quilômetros de Belo Horizonte, já há um parque-memorial onde é possível plantar uma árvore sobre as cinzas do ente querido falecido.
A ideia comum aos projetos é a de transpor o ciclo da vida sem muros, concretos ou placas - de toda sorte, inúteis - mas como árvores, que oferecem sombra e alimento aos que ficam. Se concebemos desse modo, então, podemos pensar que retornamos à terra, como ao útero do mundo, não como quem desaparece, mas como quem continua. E o fascínio está em perceber que, quando humildemente nos tornarmos oferendas para o surgimento de novas vidas, acabamos por descobrir que a vida que há em cada um de nós pode ser muito mais extensa do que nosso próprio corpo. Quem sabe, no fim das contas, morrer, caros leitores, não seja apenas uma nova forma de permanecer?
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.