Juraciara Vieira Cardoso
Juraciara Vieira Cardoso
Professora da UFMG, graduada em Direito, mestre em Direito Constitucional e doutora em Filosofia do Direito
VITALidade

A singularidade na lógica algorítmica

Ser singular é um problema em um sistema que recompensa a previsibilidade

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Cresci acreditando que viver de um modo diferente, não escolhido pela maioria, era exatamente o que me singularizava no mundo. Gostava - e ainda gosto - de situações diferentes, de roupas diferentes, de combinações inusitadas e de junções improváveis. Essas escolhas, que para muitos podem parecer irrelevantes ou até mesmo excêntricas, sempre tiveram para mim um valor simbólico, já que elas sinalizavam a minha tentativa de imprimir uma assinatura pessoal à minha existência. De afirmar, ainda que de modo silencioso, que eu estava ali, vivendo à minha maneira.

Mas não sou a única que sente assim. Tenho a nítida percepção de que as pessoas das gerações passadas cultivavam um desejo mais intenso de se afirmarem como sujeitos únicos. A singularidade era vista como virtude e, ainda que, por vezes, causasse estranhamento, ela era acolhida.

Ser “do contra” não era necessariamente um problema, era, ao contrário, um sinal de que você estava pensando por si, que não havia se rendido completamente à cartilha do sistema. As roupas, os gostos, os jeitos de andar e falar, tudo era oportunidade para imprimir uma marca pessoal, uma espécie de estética própria.

 

Com a popularização da internet e a massificação das redes sociais, percebo que a ideia de singularidade, ao menos em sua dimensão estético-performativa, tem sido substituída por uma estética da repetição. O desejo de pertencimento, que sempre existiu, agora parece demasiado atrelado à lógica de homogeneização. O discurso inicial das redes sociais prometia liberdade de expressão e autenticidade, mas o que se vê, em larga escala, é um novo tipo de conformidade: uma conformidade algorítmica, que premia o que se repete, ou seja, aquilo que se adapta aos moldes estabelecidos.

O fenômeno é visível. Não saberia nomear exatamente o corte de cabelo masculino que se tornou padrão nos últimos anos, mas posso garantir que ele está em toda parte. Homens distintos, de idades diferentes e contextos diversos, parecem ter saído do mesmo salão. A repetição não se limita ao visual, ela se estende às poses, às legendas e aos padrões de comportamento. Tudo parece estranhamente igual. E não se trata aqui de um juízo moral, mas de uma indagação mais profunda, sobre o que perdemos quando deixamos de ser quem somos para nos integrarmos a um todo que, não raras vezes, nos engole. 

Parece haver algo profundamente empobrecedor nisso. A repetição de comportamentos, se desvinculada de um processo reflexivo, nos afasta de nós mesmos, fazendo com que aquilo que inicialmente parecia um gesto de pertencimento, se transforme numa renúncia silenciosa àquilo que nos é mais genuíno. 

As redes sociais, com sua lógica algorítmica, premiam aquilo que é replicável, compartilhável e semelhante, de modo que a singularidade, por não gerar identificação imediata, não cria engajamento e, portanto, têm baixo impacto. Ser singular é um problema em um sistema que recompensa a previsibilidade e isso talvez justifique minha percepção inicial, pois as gerações passadas não precisaram se preocupar com isso. 

Talvez seja essa ausência de preocupação com o engajamento que permitiu às gerações anteriores viver de forma mais autoral. Havia espaço para o estranho e para o gesto que tinha como objetivo somente agradar a si mesmo. No entanto, atualmente, dentro do imperativo do desempenho e da visibilidade, tudo precisa ser mostrado, curtido e compartilhado. E para esse sujeito que explora a si mesmo por meio das redes sociais, não sobra mesmo muito espaço para a singularidade.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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