
Jeito de ser ou jeito para não mudar?
Só é parte essencial daquilo que somos o que passou pelo crivo da reflexão
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Já escrevi muitas vezes na coluna sobre a necessidade de sermos autênticos, mas o que percebo é que não são raras as vezes que as pessoas compreendem o termo de um modo equivocado, o associando a uma espécie de liberdade ilimitada, que acaba por negar a existência do outro. Em Heidegger, a autenticidade se relaciona com o fato de assumirmos com lucidez nossa própria finitude e, a partir desse entendimento, buscar nos apropriarmos de nós mesmos de um modo mais radical, mais livre e mais responsável.
Trata-se de uma disposição constante para não nos perdermos nos sonhos, projetos e anseios das outras pessoas, que Heidegger chamava de impessoal. A autenticidade nos convida a nos constituirmos verdadeiramente como sujeitos singulares, que saem do automático da vida para refletir sobre cada escolha e como ela reflete na integridade da existência. Logo, a autenticidade é um movimento de desvelamento do ser e, portanto, nunca pode ser concebida de um modo simplista que a associe à mera satisfação de impulsos egoísticos.
Não é incomum que comportamentos rígidos e traços pouco generosos sejam associados a um pretenso “jeito de ser” da pessoa, que deve ser respeitado, pois revelariam sua autenticidade. Essa associação se equivoca por confundir hábitos nunca questionados com a identidade e, assim, a agressividade é vista como sinceridade, e a dificuldade de escutar os outros se traveste em personalidade forte. O tal “jeito de ser” se torna escudo para que o sujeito não se questione, não reveja e não mude.
Muitos advogam que é isso é ser fiel a si mesmo, no entanto, se olhado de perto, o jeito rude e as palavras ásperas, por exemplo, podem não ser mais que hábitos ruins cultivados vida afora como se fossem constitutivos. O que estamos chamando de fidelidade a nós mesmos pode não passar de uma recusa de assumirmos que somos feitos de experiências, traumas e temperamentos, que precisam ser confrontados e não confortavelmente assumidos. A autenticidade, enquanto exercício de lucidez, exige que saibamos discernir o que em nós é mera repetição e o que é escolha renovada.
A tarefa de ser autêntico não é simples como pensam aqueles que a associam com a mera satisfação, ela exige que nos interrogamos diuturnamente sobre quem somos, analisando o que ali é genuíno e reflete nossas escolhas mais profundas e o que ali está por inércia da nossa parte. Só é parte essencial daquilo que somos o que passou pelo crivo da reflexão e, nesse caminho, cabe a nós renunciarmos a traços que, embora nos sejam familiares, já não colaboram com a construção ética da nossa existência. Como um chamado à lucidez, a autenticidade exige, por um lado, a coragem para sustentar nossas escolhas e, por outro, a delicadeza de reconhecer modos de ser que precisam ser renunciados.
E a tarefa se torna ainda mais complexa quando percebemos que, muitas vezes, são justamente aqueles traços mais arraigados de nossas personalidade os que mais precisamos abrir mão. Ocorre que, quanto mais tempo temos um hábito, mais tendemos a acreditar que ele nos é constitutivo, ai nda que nunca tenhamos refletido sobre sua real importância – atual – em nossa ordem de valores. Acreditamos que porque o hábito está ali ele tem o direito de permanecer e chamamos equivocadamente isso de autenticidade, nos esquecendo que, sem reflexão, o que chamamos de autenticidade pode não passar de deselegância, falta de tato ou grosseria – disfarçadas de fidelidade a si mesmo.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.