
Juraciara Vieira Cardoso
Professora da UFMG, graduada em Direito, mestre em Direito Constitucional e doutora em Filosofia do Direito
COLUNA VITALidade
Envelhecer na diversidade
Toda a nossa organização social foi historicamente construída sob o prisma da heteronormatividade
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02/06/2025 04:00
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Em inúmeros sentidos, envelhecer nunca foi e nem será tarefa fácil para nenhum de nós. Se olharmos ao nosso redor, veremos que ser velho não é socialmente aclamado ou bem-vindo como ser jovem. As redes sociais intensificaram ainda mais o desconforto social diante de pessoas que envelhecem. O que se lê nas plataformas escancara o etarismo que a todos nós permeia. O horror é tamanho que a todo instante somos convidados a negar o tempo e, em seu lugar, colocar cremes, procedimentos e disfarces para mascarar nossa própria efemeridade.
Mas há uma velhice que pode ser ainda mais inconveniente que as demais - aquela que não desafia apenas a lógica do tempo, mas também a lógica da norma. São velhos que, desde sua infância, nunca se encaixaram muito bem aos roteiros prontos da heteronormatividade, e muito menos nas cenas previsíveis da chamada família tradicional. São pessoas que, muitas vezes, tiveram que passar a vida toda justificando sua própria existência, para driblar silêncios e rupturas que nunca souberam muito bem entender. E agora, quando ingressam no território da velhice, descobrem que o preconceito não envelhece, ele apenas adquire novas faces nos sistemas públicos de saúde, por exemplo.
Se nossas sociedades não sabem o que fazer com seus velhos, imagina com a população que foge à heteronormatividade? A verdade é que toda a nossa organização social foi historicamente construída sob o prisma da heteronormatividade. A velhice não é só a passagem do tempo inscrita nas marcas que o tempo insiste irremediavelmente em deixar, mas também uma construção cultural, construída por meio de discursos e sentidos. O velho forjado historicamente – e para o qual todas as políticas públicas são pensadas - é aquele que se casou, que teve filhos, que virou avô e que, portanto, provavelmente tem uma grande família para lhe dar suporte.
No entanto, para muitas pessoas LGBTQIA+ que estão envelhecendo, a realidade foi roteirizada de um outro modo. É preciso lembrar que há sessenta, setenta ou oitenta anos atrás a realidade era completamente diversa, o que fazia com que muitas pessoas vivessem seus afetos clandestinamente e, consequentemente, não constituíssem suas próprias famílias. Portanto, chegam agora à velhice, muitas vezes amparados por “famílias por escolha” já que com os parentes, muitas vezes, em razão da sexualidade, as relações foram estremecidas de modo permanente há anos.
Se essas redes de apoio serviram muito bem até então, com a velhice elas tendem a mostrar suas fissuras, pois quando a necessidade de cuidados se torna intensa para todos e o corpo mostra suas fragilidades, os limites de uma rede de amizade começam a surgir. E, nesse momento, a quem resta garantir a dignidade da existência das pessoas LGBTQIA+? Todas as políticas públicas voltadas à população idosa, quando existem, são quase sempre pensadas sob a lógica do envelhecimento heterossexual. Elas partem da premissa que existe uma família nuclear de suporte, com filhos, sobrinhos, netos ou alguém da linhagem biológica para assumir os cuidados necessários.
Mas essa não é uma realidade para a população LGBTQIA+ e é preciso que olhemos com mais atenção para essas velhices que escapam ao figurino da tradição, não para enquadrá-las, mas para reconhecer que sua dignidade deve ser respeitada de modo integral. As políticas para essa população têm que considerar as especificidades de seu envelhecimento, reconhecendo que há múltiplas formas de viver, de amar e de envelhecer. E que todas elas são legítimas e merecedoras de atenção e visibilidade.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.