
A riqueza da cozinha pobre
O nome em francês é bacana, mas se chamasse 'sopa de abóbora com requeijão' seria rejeitada
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Existem preconceitos ligados a ingredientes e insumos. O termo carne de segunda é um dos piores, sendo algo que, na verdade, não existe: há carnes adequadas para preparos instantâneos como o filé-mignon e carnes adequadas para o cozimento lento.
Muitos dos melhores pratos de carne vermelha na gastronomia mundial são feitos com músculo como os boeuf bourguignon, daube de boeuf, o carbonnade belga e muitos outros. É o corte de carne perfeito com essa finalidade, os sabores finais são espetaculares.
Batata no passado já foi chamada de trufa de pobre; comer tubérculos em geral não era refinado; o que vinha do interior da terra era visto como comida de porcos. As trufas eram uma honrosa exceção, embora nem sempre tenham sido valorizadas como hoje.
Por fim, a batata se firmou como um excelente ingrediente em numerosas versões como gratinada, assada, cozida, grelhada e frita, acompanhando literalmente tudo, peixes, aves e carnes, além de ser ingrediente de consomés.
Sem querer fazer trocadilhos, em geral, o frango é quem paga o pato. As famílias brasileiras comem frango quase todos os dias em casa, mas em restaurantes ou nas aulas de gastronomia não é valorizado. Há literalmente centenas de receitas deliciosas pautadas em frango pelo mundo todo, do extremo asiático ao extremo ocidental.
Um belo frango assado é uma iguaria, ao menos nos restaurantes belgas e em algumas rotisseries são servidos como um prato especial. Na cozinha asiática, são múltiplos os preparos com capim-limão, leite de coco, gengibre, coentro, hortelã e especiarias. Na europeia, os cozidos são clássicos em base de vinhos branco ou tinto, com ervas, legumes aromatizadores e cogumelos. E em Minas temos os gloriosos frangos ao molho pardo, com ora-pro-nóbis e com quiabo. Mas ainda assim segue sendo uma carne esnobada.
A carne moída também não é bem vista por não ser cara. Me lembro de uma aula de gastronomia há alguns anos onde a usei para ensinar a fazer o autêntico e delicioso ragu à bolonhesa e um aluno me perguntou se eu a tinha trazido devido à crise.
Na aula havia um menu com o total de cinco pratos. Antes da carne moída, havia frutos do mar, trufas, açafrão espanhol, mas ainda assim ele sugeriu que eu estava fazendo economia e não querendo ensinar uma iguaria. O que seria das polpetas italianas, da bomba barceloneta e do hambúrguer se não houvesse a carne moída? É preciso entender que nem só de denver steak angus vive o homem.
Há a lenda que a feijoada teria sido criada pelos escravos para aproveitar as partes “menos nobres”- olha elas aqui de novo – da carne de porco. Na verdade, era um prato também dos patrões, adaptado de cozidos portugueses. Em outra aula de gastronomia, fiz o feijão rico, aquela minifeijoada de preparo rápido, que quebra bem o galho num dia de menos tempo na cozinha. O feijão rico é uma delícia, mas escutei o comentário de que era uma feijoada pobre.
O especial nas receitas pobres está no uso de poucos ingredientes e com resultados espetaculares. A vichyssoise francesa é uma combinação de batata, alho-poró, água e creme de leite e é um milagre. Se o nome é em francês, fica chique. Experimentei uma vez uma ótima sopa num restaurante francês chamada “la soupe de potiron au fromage blanc”. O nome em francês é bacana, mas se chamasse “sopa de abóbora com requeijão” seria rejeitada.
A grande gastronomia mundial vem da cozinha simples, antes de ser reinterpretada e tornada “cool” em restaurantes “fashion” (e caros) nas grandes cidades. É a riqueza da cozinha pobre.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.