
Em busca dos sabores perdidos
Receitas tradicionais, se forem bem feitas, são deliciosas, terão sempre o seu lugar
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Tenho um casal de amigos que fazia o teste do La Traviata com os pretendentes a genro. Como eles gostam muito de música clássica, sempre achei que era a ópera. Mas depois descobri que era o restaurante.
Na minha imaginação, eles sentavam na sala de casa para assistir a tragédia de Violeta e Alfredo. Na vida real, eles convidavam o rapaz para jantar fora e ali avaliavam sua conduta, seus modos, sua conversa e como ele tratava a sua filha.
Acho ótima essa história porque mostra o papel que restaurantes, especialmente os tradicionais, têm na vida das pessoas.
Escrevi aqui há dois meses sobre a autobiografia de Keith MacNally, dono de restaurantes icônicos em Nova York: “Eu me arrependo de quase tudo”. Uma das boas coisas que ele escreve é a menção do seu sonho de ser cineasta. Ele chegou a escrever e dirigir um filme que esteve no Festival de Cannes. Mas, depois de muitos gastos financeiros com o seu sonho e um casamento desfeito, acabou desistindo e frustrado. Até que, tempos depois, ele entendeu que seus restaurantes influenciaram muito mais a vida das pessoas do que os possíveis filmes que faria.
Muitas casas e pratos sobrevivem aos modismos e ao tempo. Nina Horta perguntou aos leitores uma vez, numa de suas colunas, onde estavam aqueles pratos do passado que não se encontravam mais em lugar algum. Na semana seguinte, ela retificou seu artigo, relatando que seu filho, depois de ler o texto, disse que estes pratos não estavam num poético vácuo de tempo, mas, sim, em alguns endereços no Centro de São Paulo.
O túnel do tempo gastronômico é fictício. O lugar que ocupa na memória é poético e real apenas para a imaginação. As receitas provavelmente existem em algum lugar concreto e às vezes sem glamour algum.
Há dois fins de semana, encontrei um amigo num show e ele me disse que tinha acabado de almoçar a feijoada do restaurante do Minas 1. Me lembrei do passado, quando ia lá frequentemente com o meu pai. Dei uma aula uma vez homenageando pratos daquela época e que ainda devem estar no cardápio, como o filé de peixe ao molho de camarão. Receitas tradicionais, se forem bem feitas, são deliciosas, terão sempre o seu lugar.
Há vários pratos que fizeram a fama de casas que estão cheias até hoje, como o Peixe a Comodoro da Cantina do Lucas, o Filé Surprise da Casa dos Contos e os clássicos do Tip Top.
Todo mundo de uma certa faixa etária se lembra do estrogonofe do Chez Bastião, de pratos hoje “vintage” como o Frango a Kiev, os Steaks Diana e Siberiana e a banana flambada com sorvete, atração principal dos restaurantes quando o Maitre D’ acendia o fogo no meio do salão em baixelas de prata. Todo mundo olhava, era um ponto alto na noite. Era um clássico do Clube Nacional, no Cidade Jardim.
Existem muitos outros pratos e restaurantes também para serem lembrados. Vocês, que estão lendo esta coluna, devem os ter em sua memória afetiva e nas histórias de família que aconteceram dentro de casas tradicionais.
O poder da comida de evocar o passado e conectar o indivíduo com a sua história é grande. E também de salvar um dia triste, haja vista a famosa descrição de Proust do pedaço de Madeleine que caiu na sua xícara de chá, trazendo à tona as memórias de toda uma vida e gerando uma história escrita em sete volumes, um espetacular ícone da literatura mundial.
A origem da palavra restaurante está em estalagens nas estradas onde o viajante parava e podia comer, beber e descansar, restaurando as suas forças. Este é e será sempre o poder reparador de uma boa refeição. Que siga sendo assim.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.