
Plantões sem fim, vida sem plano
Quando uma rotina tóxica engole o médico, outros enriquecem às custas de sua saúde
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Há milhares de médicos vivendo no modo automático: três, quatro, cinco plantões por semana; trânsito, prontuário, carimbo, madrugada; um corpo exausto que não dorme e uma cabeça que não desacelera. Trabalha-se cada vez mais e, paradoxalmente, avança-se cada vez menos — na carreira e na vida. O “depois eu organizo” virou estilo de vida, até que a conta chega: saúde mental estilhaçada, família em frangalhos, e a sensação incômoda de que o tempo está passando — e você está parado.
Isso não é “frescura geracional”. É epidemiologia, e traz um importante debate sobre a vida de muitos médicos: burnout, carga horária tóxica, plantões mal remunerados e pouco previsíveis. Tudo isso é um risco concreto, mas o problema é um pouco mais complexo, e multifatorial.
No pano de fundo, há um vetor que empurra tudo para baixo: a proliferação de escolas de medicina, e consequentemente, de médicos. Saímos de 78 faculdades em 1990 para 389 cursos em 2025. Destes, 167 (42,9%) foram abertos nos últimos 10 anos, e pasmem: só este número já supera o total de escolas médicas da China, com 164 cursos e uma população 8 vezes maior. Temos mais de 564 mil médicos, com cerca de 2,7 médicos por mil habitantes, superando países como Japão (2,5) EUA (2,6). Com a aprovação recente de mais 95 cursos, temos uma produção acelerada de egressos disputando o mesmo bolo de plantões, sem que a oferta de residências e postos qualificados cresça no mesmo ritmo. O resultado é óbvio: poder de barganha do plantonista despencando, mais gente se acotovelando por escala, e a necessidade de aceitar qualquer vínculo precário para conseguir pagar as dívidas geradas pelas mensalidades médias de mais de 10 mil reais durante os 6 anos de curso.
No SUS, onde boa parte dessa massa desemboca, o retrato é conhecido: falta insumo, falta leito, falta exame, falta equipe — e sobra cobrança. O médico trabalha com estrutura improvisada, vira gestor de fila, absorve atraso sistêmico e ainda precisa segurar a revolta do paciente (e de seus familiares), porque é ele o rosto visível do colapso. Entre uma intercorrência e outra, há violência verbal (às vezes física), pressão por produtividade, risco jurídico e zero previsibilidade. Em suma: condições indignas para quem cuida — e desumanas para quem precisa ser cuidado.
Para as médicas, o quadro consegue ser ainda pior: evidências mostram que elas têm risco de suicídio significativamente maior que mulheres da população geral. Além disso, pesquisas associam as longas jornadas à maior ocorrência de divórcios. É a carga excessiva cobrando o seu preço, onde mais dói.
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Por que isso importa? Porque enquanto muitos colegas se esfolam para manter o sistema girando, outros enriquecem às suas custas: operadoras que pressionam tabelas ao chão, intermediários que capturam toda a margem, plataformas que transformam consultas em commodity, e estruturas que tratam médico como uma mera “peça substituível”. No fim, sobra ao profissional o que é mais caro: riscos, responsabilidades e culpa. O lucro, via de regra, vai para quem não desliga um alarme às 3 da manhã, e não dobra plantões para pagar as contas e ter algum tempo com a família.
Enquanto o plantonista negocia hora a hora, quem manda no jogo verticaliza o tabuleiro: operadoras compram clínicas, hospitais compram agendas, redes compram território. O resultado é uma aritmética cruel e previsível: mais médicos, menos autonomia, honorários achatados e vínculos precários. Sem estratégia, o destino do médico vira orçamento dos outros.
Os números sobre sofrimento psíquico e o recorte específico para médicas são duros. Eles mostram, com graus diferentes de evidência, que carga tóxica e falta de autonomia adoecem quem deveria curar os outros. Quase 40% dos médicos no Brasil referem alguma doença mental ativa (ansiedade, depressão ou burnout). E mais uma vez, as mulheres pagam um preço mais alto: representam 2/3 do total de afetados.
É possível sair desse ciclo tóxico e desumano? Sim, existe uma saída, mas ela exige parar para pensar, e planejar. Contudo, isso é um luxo quase impossível em uma semana de 60 a 80 horas de trabalho. Mas com alguma ajuda externa, o médico pode ter sua vida de volta, em movimento consciente: o salto de “apenas médico”, para empresário da medicina.
Trata-se de abandonar o papel de bombeiro, e assumir o de arquiteto. De quem vive apagando incêndios, para quem constrói algo que não pega fogo ao primeiro imprevisto. Assumir o comando da sua carreira, sem ofuscar o brilho da medicina.
“Ah, mas é impossível com a realidade atual do SUS e dos convênios.” Segundo Einstein, insanidade é fazer a mesma coisa repetidamente, e esperar resultados diferentes. O mundo mudou, e a medicina mudou junto. Plantão é uma fase, não um destino; persistir rodando só nesse eixo te deixa vulnerável: clínica, emocional e financeiramente.
Mas como fazer este movimento de forma consciente e planejada? No meu escritório, já auxiliamos centenas de médicos nessa mudança, e na prática, é preciso cumprir algumas etapas:
• Proposta e público: o que você entrega, para quem e como monetiza.
• Portfólio equilibrado: combine assistência, procedimentos, ensino, gestão, pesquisa e atuação digital — sempre dentro das fronteiras éticas e legais.
• Início com segurança: mantenha a renda atual, enquanto testa e ajusta o novo modelo.
• Agenda humanizada: agenda com colchões de descanso, limites claros e previsibilidade.
• Governança jurídica: pessoa jurídica organizada, contratos e TCLE decentes, LGPD e acompanhamento jurídico contínuo.
• Conformidade no dia a dia: jornada do paciente clara, prontuário defensável e comunicação responsável (nada de marketing que te incrimina).
• Escala inteligente: cooperação entre colegas, uso de estruturas compartilhadas, protocolos e automação para multiplicar produtividade.
A mensagem final é simples, mas incômoda: ninguém dentro desse sistema vai organizar a sua vida por você. Nem gestor, nem operadora, nem plataforma. Enquanto você se exaure para manter o plantão em pé, o sistema funciona exatamente como foi desenhado: para capturar o valor do seu trabalho, até o seu limite. Profissionalmente, a decisão mais “cirúrgica” que você pode tomar, é assumir a autoria do seu projeto. Dedicar-se a você com método, ética e a mesma seriedade que você se dedica aos pacientes.
Chega de sobreviver por turnos. Ou você vira a mesa — com gestão, ética e método — ou a mesa segue virando sobre você. Não se trata de abandonar o SUS ou a assistência; trata-se de deixar de ser peça descartável do sistema, para se tornar autor de um projeto que não só pague as contas, mas que preserve sua saúde mental e lhe garanta qualidade de vida.
Porque quem vive no modo automático, perde autoria da própria história. A medicina boa precisa de médico vivo, saudável e no comando da própria vida. O resto, é romantização de sofrimento. E a conta, cedo ou tarde, chega!
Renato Assis é advogado há 18 anos, especialista em Direito Médico e Empresarial, professor e empresário. É conselheiro jurídico e científico da ANADEM. Seu escritório de advocacia atua em defesa de médicos em todo o país.
renato@renatoassis.com.br
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.