Renato Assis
Renato Assis
Renato Assis é advogado especialista em Direito Médico, professor e empresário. Seu escritório de advocacia atua com Defesa Médica há 18 anos, em todo o território nacional.
DIREITO & SAÚDE

Aumento de erros médicos: números distorcidos e verdades ocultas

Estatísticas falaciosas estimulam a judicialização, que desgasta os médicos e proporciona aos pacientes apenas frustração e prejuízo

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Dados recentemente publicados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) causaram alvoroço na imprensa, que alardeou um aumento de 506% nos processos por “erro médico” em um único ano, o que equivaleria a 203 novos casos por dia no Brasil. A manchete correu o país, foi replicada por dezenas de portais, e se consolidou como verdade, embora seja uma grande mentira.

 


Segundo dados do CNJ, apenas em 2024 o país teria registrado 74.358 ações desta categoria, frente a 12.268 do ano anterior. No sistema público seriam 10.881 ações por danos morais e 5.854 por danos materiais. Já no sistema de saúde privada, os números triplicam, com 40.851 processos por danos morais e 16.772 por danos materiais.

 

 


O problema é que há graves inconsistências nos dados e, pior ainda, na forma como foram interpretados pela imprensa. A tal “explosão” de processos não aponta para uma crise de erro médico, mas sim para uma crise de caráter jornalístico. Trata-se de mais um exemplo de desinformação travestida de estatística.

 

Em primeiro lugar, é preciso informar que os dados informados são amplos e gerais, referentes a problemas no sistema de saúde público e privado. Referem-se a pedidos de indenização por danos morais e materiais, relacionados aos serviços de saúde pública e privada. Não se referem, como maliciosamente sugerido, somente a ações de indenização em face de médicos, por acusação de erros no exercício da medicina.

 

Nada indica, portanto, que todas essas ações sejam decorrentes de falhas médicas. Tampouco se pode afirmar que todas sejam movidas contra médicos. Muitas das ações referem-se a falhas estruturais, a omissões do poder público e a negativas de tratamento por planos de saúde, casos em que o médico sequer é parte no processo.

 

Em segundo lugar, o CNJ contabiliza como “novo processo” qualquer nova demanda judicial, independentemente do grau de jurisdição. Recursos, agravos, embargos - tudo entra na conta como ação inédita. Isso infla artificialmente os números e distorce a realidade quando se olha somente para os números, ignorando todo o resto.

 

Analisando os dados de forma leal e correta, estima-se que o aumento de processos, na verdade, gira em torno de 66,98%. Contudo, não podemos esquecer que mesmo este percentual pode ser impactado de outra distorção, desta vez provocada pela mudança na categorização dos processos no sistema do CNJ, que, em setembro de 2023, extinguiu a categoria “erro médico” (justamente para evitar injustiças como a presente).

 

Com isso, as ações que antes estavam sob essa rubrica passaram a aparecer como “danos morais” e “danos materiais”, o que pode ter inflado artificialmente esses números desde a mudança.

 

Com tantas distorções óbvias e visíveis, por que, afinal, a imprensa insiste em divulgar estas estatísticas absurdas, falaciosamente classificadas como “erro médico”? A resposta é simples: sensacionalismo vende. Quanto mais escandalosa for a estatística, mais manchetes, mais cliques e mais lucro com anúncios. E, infelizmente, menos verdade. A verdade, afinal, não viraliza.



Não estamos negando que houve aumento no volume de ações indenizatórias em face de médicos. Ele existe, mas se deve a uma série de fatores e, possivelmente, o menor deles são os casos reais de má prática médica.

 

Notícias falaciosas como essas são, sem dúvidas, os verdadeiros vilões do sistema, por distorcerem a realidade de forma cruel e estimularem a animosidade social contra a classe médica. Matérias como estas são profundamente injustas com os médicos. Contudo, são também muito perigosas para os próprios pacientes, pois que também não é dito — e nunca será manchete — é que mais de 90% dessas ações terminam com absolvição dos médicos.

 

Nos nossos mais de 15 anos atuando na defesa médica, contamos nos dedos os casos em que houve efetiva condenação. Isso porque a maioria das ações não se baseia em erros, mas, sim, em frustrações, expectativas irreais e judicialização imprudente dos infortúnios naturais da medicina.

 

Essas manchetes, com dados brutos e interpretações rasas, alimentam uma verdadeira “cultura da denúncia”, estimulando o ajuizamento de ações que se mostram, na prática, verdadeiras aventuras jurídicas. E quem paga por isso? Os pacientes, que alimentam falsas expectativas, enfrentam longas batalhas judiciais e, ao final, saem frustrados (e condenados). E os médicos, que vivem sob o risco constante de serem acusados por desfechos que não resultam de erro algum, mas  que, embora não resultem em condenações, já são suficientes para desgastar sua imagem perante a sociedade. É uma batalha em que todos perdem.



Portanto, quem ganha com isso? A banda podre da imprensa, que fatura com a audiência gerada por toda essa desinformação. Profissionais sem caráter, que pouco se importam com o fato de que uma cirurgia pode falhar mesmo com técnica perfeita, que um desfecho trágico pode ocorrer mesmo com conduta correta ou que boa parte das “vítimas de erro” sequer seguiu corretamente as orientações médicas. Infelizmente, a verdade não viraliza como a mentira.

Enquanto isso, o sistema público de saúde segue precário, sem medicamentos, sem exames e com filas intermináveis. A população, iludida por manchetes alarmistas e reportagens sensacionalistas, acaba sendo incentivada a responsabilizar o único elo da cadeia que ainda funciona com alguma dignidade: os médicos, que convivem com o medo constante de serem responsabilizados não por erros, mas por consequências naturais da prática médica.


O Brasil precisa discutir a judicialização da saúde com seriedade — e isso não se faz com manchetes baratas, nem com estatísticas manipuladas. Isso se faz com dados reais, responsabilidade institucional e respeito à medicina.


Fingir que vivemos uma epidemia de erro médico é mentir para a sociedade. O que estamos vivendo, de fato, é uma epidemia de desinformação — e essa, sim, mata todos os dias, com requintes de crueldade e covardia.

 

 

Na próxima semana, entre os dias 18 e 21/6, estarei mais uma vez participando da Jornada Paulista de Cirurgia Plástica como palestrante convidado. Na oportunidade, faremos o lançamento oficial do Paciente Legal, uma plataforma que irá revolucionar a forma como os médicos lidam com os riscos da profissão.

 

Renato Assis é advogado há 18 anos, especialista em Direito Médico e Empresarial, professor e empresário. É conselheiro jurídico e científico da ANADEM. Seu escritório de advocacia atua em defesa de médicos em todo o país.
Site: www.renatoassis.com.br
Instagram: renatoassis.advogado

 

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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