
Livro sobre Carolina Maria de Jesus nos convida a repensar a indiferença
Obra de Carlos Rafael Pinto faz nova escuta de uma vida humana, como tantas outras, de abandono, esquecidas, despejadas, como podemos constatar em nossas ruas
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Mais uma importante contribuição sobre literatura, sobre o que se faz com as letras e questões sociais, lançada este mês, é o livro de Carlos Rafael Pinto, “Carolina Maria de Jesus: contribuições para uma teologia negra decolonial” (Contra o Vento). Um belo livro.
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Carlos Rafael Pinto, em continuidade ao mestrado em teologia pela Faculdade Jesuíta (Faje), apresenta-nos agora o resultado de seu doutorado na mesma instituição. Uma vasta pesquisa da vida e obra dessa autora, importante nos anos 60, e, ainda hoje, por ressaltar as condições sociais miseráveis que ainda assolam o povo brasileiro.
A tese tem como título as palavras da escritora: “Será que Deus esqueceu-me?”. Retomar essa humanidade desamparada é imprescindível para que não esqueçamos que a trajetória dessa mulher negra, favelada e, à exceção de ser autodidata, é também a situação de muitas mulheres brasileiras.
Em “Quarto de despejo: o diário de uma favelada” – pela Editora Francisco Alves em 1960; e hoje, na 10ª edição pela Ática –, ela conta sua história de catadora de papel e o sofrimento para sustentar seus três filhos sozinha, enfrentando fome, frio e desamparo absolutos. Carolina é um fenômeno raro e curioso, uma anônima que ganhou a atenção do Brasil pela autenticidade e força de sua palavra. Um pequeno trecho de sua escrita:
“(..) Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Eles estão cheios de vida. Quem vive, precisa comer. Fiquei nervosa pensando: 'Será que Deus esqueceu-me? Será que ele ficou de mal comigo?'”.
Essas palavras tocam a sensibilidade dos leitores pela situação extrema e uma força que a impediu de acabar com sua vida e a dos filhos, num dia de extrema necessidade, no limite máximo de sofrimento. Mas desistiu desse intento trágico, ganhando força com sua escrita que sustentou todas as noites antes de dormir.
Moradora da extinta favela de Canindé, em São Paulo, comentou com o jornalista Audálio Dantas que escrevia um livro sobre as coisas da favela. Curioso, ele se interessou e a acompanhou até sua casa, e se surpreendeu diante de 20 cadernos surrados e amarelados escritos em lápis e caneta, com poesias, romances, contos, provérbios e esse diário.
O jornalista então publicou seus escritos no jornal Folha da Noite, em 1958. Dois anos depois, foi lançado seu “Diário”. Dez mil exemplares. E foi pouco. É uma voz que não se pode calar. Não se pode esquecer.
O livro “Quarto de despejo” teve grande repercussão a partir de sua descoberta e mudou a vida de Carolina, fazendo dela uma escritora conhecida e merecedora de prêmios literários e tradução em várias línguas.
Um belo prefácio de Francys Silvestrini Adão, identifica Rafael à escritora. Como ela, ele se coloca como exímio catador de palavras, cheias de vida e, com afeto e rigor, fez-se discípulo, confidente, intérprete, cúmplice e defensor, ao lado de muitos pesquisadores, da obra de Carolina e nos brinda com essa pesquisa, escrita paciente e cuidadosa, articulada com a elaboração de uma teologia negra decolonial.
Vai mais longe: faz uma nova escuta de uma vida humana como tantas outras, de abandono, esquecidas, despejadas, como podemos constatar em nossas ruas. Rafael reativa essa obra atualíssima e questiona nossa visão de mundo. Uma viagem literário-teológica, que convida o leitor a repensar as tantas Carolinas com as quais cruzamos, muitas vezes, indiferentes, em nossa pressa cotidiana.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.