
Sobre o desconforto
O esquecido não morre. O esquecido não nos esquece. Ele insiste e regurgita, trazendo amargos sabores de tristezas engolidas
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Muitas pessoas procuram um analista por um desconforto inespecífico. Uma angústia, a ansiedade, como se fosse uma “agonia desatada”, como se costuma dizer na tentativa de colocar em palavras aquilo que sofre sem um nome que o traduza. Uma ponta solta ao vento dentro do peito.
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O sofrimento pode vir de causas ignoradas, e é claro que vem. Muitas de nossas causas estão em estado de desconhecimento, pois foram repelidas por uma censura que expulsa da consciência suas causas. Elas vão para dentro, para “aquele velho baú de prata guardado dentro de mim”, cantado por Gil no exílio durante a ditadura militar no Brasil.
O velho baú onde guardamos nossos pertences, coisas preciosas, pelas quais temos grande apego, não podemos perdê-las sem perder nossas causas, mas, no presente, não precisamos dispor ou usar. Elas nos desorganizariam se ficassem surgindo no cotidiano. Então, toda vez que precisamos recordar ou encontrar coisas do passado, abrimos o baú, pretendendo encontrar nossos perdidos e achados.
Lá estão contidas tanto coisas que nos trazem alegrias quanto outras, que nos trazem dor, saudade, emoções fortes de um vivido que esquecemos e lembramos ocasionalmente. Coisas pelas quais fizemos um luto e deixamos ir, porém, as revisitamos ocasionalmente, reencontrando o conosco que fomos antes.
Muitas vezes, nossas reminiscências são saudosistas, mágoas guardadas, traumas sofridos, perdas, memórias afetivas de épocas anteriores despertadas em situações específicas e similares, de lá, de outra cena, e nos acendem sentimentos e lembranças. Ah, que saudade, ou, ainda bem que já foi… conforme aquilo que hoje é!
Somos camadas arqueológicas de memórias reencontradas nas escavações que o tempo nos traz. Somos o agora, o antes e o depois. Múltiplos, divididos, temos gavetas de memórias. Caleidoscópicos. Somos muitos.
Os desconfortos não podem ser desconsiderados. É preciso lhes dar passagem, não estacionar neles. São sinais importantes, algo a ser escutado. A serem levados em conta na economia do dia, apontam para causas que precisam ser escutadas. E a palavra é o grande condutor a que precisamos recorrer. O desconforto é o pedido de atenção. E não dar a atenção devida é acumular dívidas e permanecer culpado do que nem se sabe o quê.
Culpados dos abismos silenciosos que nos habitam. Como disse Clarice Lispector: “O dia corre lá fora à toa e há abismos de silêncio em mim”. O que são esses abismos de silêncio? De onde vêm os ecos de nossas angústias? O que desejamos sem consentimento ou permitimos, nos excedemos em condescender com o outro e não nos contemplamos. O que fizemos, afinal, sem saber?
São metros, quilômetros, sem que pudéssemos escutar nossas verdades, em que não pudemos constatar aquilo que se apresentava claro e o olhar não alcançou, aquilo que foi, é e será parte do núcleo da experiência.
O esquecido não morre. O esquecido não nos esquece. Ele insiste e regurgita, trazendo amargos sabores de tristezas engolidas. O retorno do reprimido ressurge como um incômodo a ser revisto, pois está ainda fermentando no baú, que podemos chamar inconsciente. E chamamos.
É na escuta desses silêncios aprisionados que haverá redenção. É da lógica inconsciente, tão afastada da consciência, que está o singular, o cerne do sujeito. Do dono de cada vida, que ainda não tomou posse de seu latifúndio e das lacunas na consciência, das causas dos saberes que o inconsciente produz. E se nos parecem guardados num baú, não estão. Não estão encerrados e trancados como parecem. Estão na superfície das palavras, navegam precisamente onde deveriam, esperando que se as colha numa escuta que aponta para a ressonância do ser.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.