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O fundo não é mais o poço do passado, mas o do futuro. Trump, Xi Jinping e Putin querem impor um mundo trilateral com cada um imperador de seu quadrado.
Os Estados Unidos deslocaram três contratorpedeiros Aegis para as águas próximas à Venezuela. A justificativa oficial foi a de que essa movimentação hostil faz parte do esforço do governo de Donald Trump para combater ameaças vindas dos cartéis de drogas latino-americanos. Parece desculpa esfarrapada: se os EUA — os maiores consumidores mundiais de cocaína, maconha, entre algumas outras drogas que proliferam nos EUA - estivessem de fato determinados a enfrentar os cartéis, deveriam começar dentro de seu próprio território, reforçando suas fronteiras e reprimindo os inúmeros traficantes que atuam em solo estadunidense. E é pelas mesmas razões que acontecem em outros lugares: em parte porque a droga se meteu na política, em parte porque é mercadoria da economia.
Ainda que o governo de Nicolás Maduro acumule motivos para não ser bem-quisto interna, regional e internacionalmente por defensores da democracia, é esdrúxula e reprovável qualquer tentativa de interferência militar externa contra a Venezuela. Na hierarquia das preocupações, a Venezuela é um problema dos venezuelanos e, em segundo lugar, da América do Sul. Fora dos fóruns multilaterais cada país é cada país.
Isso de os EUA ficarem metendo o bedelho em questões de países sul-americanos não apenas é antiquado, equivocado e negativo, inclusive para os EUA. Mas, nas condições atuais, representa duas outras coisas, preocupantemente, contemporâneas.
Primeiramente, é um fator de distração para assuntos mais graves e relevantes para a posição dos EUA e a defesa de seus interesses. Em segundo, trata-se de uma possível demonstração que a administração Trump admite o fim da possibilidade de atuação global dos EUA e aceita negociar com Rússia e China uma divisão aberta e autoritária do globo em esferas de influência. Sobrando para os EUA, nesse cenário, a hegemonia sobre as Américas. Três líderes autoritários que se acertam dividindo o mundo em seus quintais.
Seria por isso, aliás, que tanto o Japão quanto a Coreia do Sul começaram a considerar o impensável até pouco tempo atrás: possuir armas nucleares, como uma necessidade de autopreservação, visto que os EUA dão sinais de que não só irão se afastar da região, mas que não se responsabilizam mais pelo que prometeram no passado. Assim como as potências médias asiáticas não assistirão de braços cruzados a essas mudanças geopolíticas rumo a arbitrárias esferas de influência, os europeus também não aceitarão que a Rússia faça o que quiser em sua região. Bem, espera-se que os países da América Latina, igualmente, não aceitem ingerências agressivas e/ou violentas dos EUA em suas jurisdições.
O alerta disparado pelos três contratorpedeiros Aegis posicionados em águas onde não deveriam estar sem serem convidados, soma-se a outros sinais preocupantes para todos aqueles que valorizam o multilateralismo, a soberania nacional, a proscrição do abuso de poder, e a solução pacífica dos conflitos.
O nome Aegis, que designa o sofisticado sistema integrado de armamentos navais empregado na classe de contratorpedeiros em questão, significa em português Égide – palavra oriunda da mitologia grega. A Égide era uma couraça ou escudo mágico, frequentemente associado a Zeus e sua filha Atena, e representava não apenas proteção, mas também um símbolo de autoridade e legitimidade divina.
Quando Atena – símbolo da sabedoria e da retidão – portava a Égide, seus inimigos eram tomados de pavor, pois não se tratava de uma defesa comum, mas de um instrumento que encarnava a ordem cósmica e a justiça dos deuses, legitimando a deusa, essencialmente associada às mais nobres aspirações da vida urbana e às formas civilizadas de convivência.
Essa imagem nos recorda de como a linguagem e os símbolos militares são utilizados, ontem e hoje, não apenas para designar objetos bélicos, mas para projetar poder e avocar uma pretensa legitimidade aspiracional. Afinal, nada no mundo dura sem legitimidade.
E é justamente por isso que é fundamental evitar agir ilegitimamente ou, pior ainda, tentar conquistar e manter algo sob bases ilegítimas. Afinal, é fato que a própria mitologia grega ensina que, se não portada com legitimidade, mesmo a égide não garante vitória. No mundo real, igualmente, impérios que, confiando em sua força bruta, abusam de seu poder, escancararam ter sucumbido à arrogância violenta que precede a queda.
O verdadeiro desafio segue sendo liderar com justiça e sabedoria. O que anda faltando no mundo atual.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.