
Águia e dragão autoindulgentes
A velocidade com que as relações entre Estados Unidos e China se deterioraram é função direta das novas ideias que dominam o pensamento de partidos
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Os desentendimentos envolvendo os Estados Unidos e a China tiveram início ainda durante o governo Obama com a célebre doutrina da então secretária de Estado, Hillary Clinton, intitulada “America’s Pivot Toward the Asia-Pacific”, ou “A Reorientação dos Estados Unidos para a região Ásia-Pacífico”. A visão temerosa sobre a China mudou o foco e a prática dos EUA, alterando todo um comportamento estratégico iniciado na gestão de Richard Nixon, sob a batuta de Henry Kissinger.
Kissinger nunca foi autocomplacente, ao contrário foi o mais preparado e útil aos interesses dos Estados Unidos. A “reorientação” anti-China de agora é um desastre e mais estimula a similar autoindulgência chinesa. Líderes gigantes costumam desconhecer o tamanho do que ignoram e dão à arrogância ares de autocomplacência.
A velocidade com que as relações entre Estados Unidos e China se deterioraram é função direta das novas ideias que dominam o pensamento político dos partidos Republicano e Democrata dos Estados Unidos. Todavia, ainda que o diagnóstico de Hillary Clinton estivesse correto — afinal, não parece equivocado afirmar que “o futuro da política, neste século, será decidido na Ásia, e não no Afeganistão ou no Iraque” —, suas prescrições acabaram ajudando mais a China do que os Estados Unidos.
Guiados por uma visão estreita e marcada por um temor quase sobrenatural em relação à China, os Estados Unidos passaram a acumular estratégias e táticas erráticas para lidar com a ascensão global do poder político e econômico organizado a partir de Pequim. Ascensão de um dragão astuto observador da fragilidade do outro.
Um dos exemplos mais recentes do desconcerto estadunidense frente à astúcia estratégica chinesa está relacionado à atual onda de eletrificação da mobilidade ao redor do mundo. A adoção precoce dos veículos elétricos na China, baseada em vultosos investimentos em tecnologias, representa um claro caso de “leapfrogging” estratégico.
Sem uma versão adequada em português, “leapfrogging” significa literalmente “pular carniça”— aquele jogo infantil de superar o obstáculo apresentado pelo coleguinha –, mas é um conceito importante das discussões sobre estratégias de desenvolvimento.
A isolada e tímida China é o maior exemplo de situação que pode ser descrita como o esforço de países retardatários em fazer algo diferente e visionário em certa indústria antes dos países desenvolvidos. E ultrapassá-los, sem a necessidade de passar pelas etapas percorridas pelos países desenvolvidos.
Uma lição para países permanentemente em dúvida sobre o que fazer para se desenvolver de verdade é evidente. A ascensão da China ao topo da indústria automotiva global tem muito de forças de mercado atuando de forma descoordenada. Países chorões, insuportáveis reclamantes, nunca combinaram políticas públicas planejadas e engenhosamente adaptadas, voltadas tanto à inovação doméstica quanto à colaboração internacional como fez a China – parceria com a diplomacia do sentimento autoindulgente que assegurou a contínua transferência de tecnologia e know-how aos atores chineses. Até a Embraer brasileira caiu nessa nuvem de lágrimas e ensinou mais do que aprendeu com os chineses.
Um dos principais fatores que ajudam a explicar a enrascada em que os Estados Unidos se meteram ao confrontar Pequim com tarifas estratosféricas – e que tornam os fabricantes chineses tão promissores – são as sofisticadas cadeias de suprimentos domésticas da China.
Praticamente tudo o que compõe um veículo elétrico chinês, as baterias, os diversos minerais e metais, e os semicondutores, é produzido internamente. Isso permite que os fabricantes chineses tenham acesso rápido, confiável e eficiente a todos os insumos necessários, sem depender da complexa e às vezes sombrias jogadas de uso das redes de interconexão globais para dobrar adversários.
Em um momento em que sua economia está sendo abertamente “contida” por Washington, a força dessas cadeias domésticas mantém a China operando a pleno vapor, como também fortalece seu poder de retaliação.
A retórica sobre a “contenção econômica” da China é unilateral, logo uma estratégia de pouca sabedoria. Isso porque, se de fato os Estados Unidos desejam evitar uma China superpoderosa, o caminho mais eficaz é justamente o oposto. Afinal, foi exatamente uma estratégia multilateral que trouxe paz à historicamente conflagrada Europa Ocidental.
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Se a águia e o dragão andam se estranhando, é preciso que percebam que simbolizam dois países acostumados a ser admirados. Estamos em outro mundo onde o que é fácil ao forte enfraquece. Melhor pararem de reclamação e de buscar a hegemonia, a esperança perdida do mundo autoritário. Que juntos moldem, positivamente, a ascensão um do outro.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.