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Luiz Carlos Azedo
ENTRE LINHAS

Cláudio Castro promove a necropolítica com o conceito de "narcoterrorismo"

O termo "narcoterrorista" desloca o crime do âmbito penal para campo da segurança nacional. É uma palavra importada da doutrina norte-americana da "narcoguerra"

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O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, rompeu de forma explícita com os paradigmas de segurança pública estabelecidos pela Constituição de 1988. Ao comentar a Operação Contenção, deflagrada no Complexo do Alemão e na Penha – a mais letal da história do estado, com mais de 120 mortos –, Castro sintetizou os resultados do conceito de narcoterrorismo: “Temos muita tranquilidade de defendermos tudo que fizemos ontem. Queria me solidarizar com a família dos quatro guerreiros que deram a vida para salvar a população. De vítima ontem lá, só tivemos esses policiais.”

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A frase é mais que uma defesa corporativa. Ao tratar os mortos como “narcoterroristas”, Castro inaugura no Brasil uma retórica que substitui a segurança pública pela lógica da guerra interna. Em nome da “defesa da população”, o Estado reivindica o poder de decidir quais vidas são protegidas e quais podem ser eliminadas. A operação de “cerco e aniquilamento”, do ponto de vista militar, foi bem-sucedida. Mas não desarticula o tráfico de drogas nem recupera o território, porque a violência volta à “normalidade” e, geralmente, as milícias ocupam o espaço dos traficantes no controle da economia informal.

O uso do termo “narcoterrorista” é deslocar o problema do crime do âmbito penal para o campo da segurança nacional. É uma palavra importada da doutrina norte-americana da “narcoguerra”, usada na Colômbia e no México para justificar o emprego das Forças Armadas e a suspensão de garantias legais.

Quando Castro adota esse enquadramento, ele rompe a fronteira entre direito e exceção. A favela deixa de ser território civil e passa a ser tratada como teatro de operações militares. A consequência imediata é a militarização ampliada da política de segurança, legitimando mortes em massa e esvaziando o controle judicial.

O conceito de “narcoterrorismo” não existe no ordenamento jurídico brasileiro. Seu uso político é uma manobra simbólica que transforma o criminoso em inimigo absoluto e o Estado em autoridade soberana sobre a vida e a morte. Obviamente, é uma ruptura de acordo com o ideário da extrema-direita brasileira, que Cláudio Castro (PL) representa. Trata-se, como aponta o sociólogo Pedro Cláudio Cunca Bocayuva Cunha (UFRJ), de uma forma de necropolítica: “o governo da morte como instrumento de poder”.

Segundo Bocayuva, conceitualmente, a necropolítica é o regime em que “o medo e a crueldade se tornam dispositivos de governo”. No caso do Rio, o “narcoterrorismo” fornece a gramática perfeita para que o governo adote a violência extrema nos confrontos com os traficantes, num contexto de guerra aberta na qual não há “suspeitos” nem “cidadãos em conflito com a lei”: são inimigos mesmo, que precisam ser fisicamente eliminados, em confrontos diretos e, muitas vezes, execuções sumárias. Falar em inimigos. Com amplo apoio popular, é uma forma de combate que elimina qualquer possibilidade de direito.

Cartografia da morte

O balanço da Defensoria Pública do Rio de Janeiro não deixa dúvida do êxito da operação, do ponto de vista da letalidade: 117 civis mortos para quatro agentes do Estado. Para o governador, só há quatro vítimas – os policiais. As outras mortes são tratadas como estatísticas colaterais, sem direitos a serem preservados. É a tradução literal da necropolítica: o Estado não apenas mata, mas escolhe quem merece ser chorado.

Bocayuva chama isso de “cartografia da morte” — uma geografia social em que o território periférico e o corpo negro são administrados como zonas de exceção. A militarização urbana, a naturalização da crueldade e a ausência de políticas de memória e reparação formam o tripé desse poder necropolítico.

Enquanto Castro exibia orgulho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reagiu com perplexidade e indignação. Em viagem oficial ao Sudeste Asiático, Lula foi informado da operação apenas ao retornar ao Brasil. Reuniu-se de emergência com seus ministros, “estarrecido” com o número de mortos e com o fato de o governo federal não ter sido avisado. O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, foi enviado ao Rio para acompanhar a crise e cobrar explicações.

O contraste entre o discurso de Castro e a reação de Lula simboliza duas concepções opostas de Estado: uma que se ancora na lógica da exceção, outra na Constituição de 1988. Quando o governador diz “ou soma no combate à criminalidade ou suma”, ele não apenas desafia o governo federal – nega a própria ideia de política como espaço de mediação, substituindo o diálogo pela força. Por óbvio, não faz isso por acaso.

Há uma disputa no imaginário da sociedade pela bandeira de ordem, que o governo federal tenta recuperar com a PEC do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e a nova Lei das Facções, que endurece as penas para os chefões do tráfico, ambas encalhadas na Câmara por pressão dos governadores de oposição, entre os quais Castro.

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Na teoria de Achille Mbembe, autor do conceito, a necropolítica define o poder soberano como aquele que decide “quem deve morrer e quem pode viver”. No Rio, Cláudio Castro assumiu essa prerrogativa de modo explícito, revestido de legitimidade moral e linguagem popular. O “narcoterrorista” é um ser fora da lei, cuja eliminação é um ato heroico e patriótico, onde as favelas e comunidades periféricas se confundem com o campo de batalha. É o mesmo mecanismo simbólico que sustentou a guerra suja na Colômbia e a guerra perdida no México.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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