LC
Luiz Carlos Azedo
ENTRE LINHAS

A territorialização do crime organizado no Rio é uma patologia social e pol

A tríade território, sociabilidade e economia ilícita é o eixo estruturante do poder paralelo no Rio. Eis a anatomia do patológico: o crime como forma de organi

Publicidade

Mais lidas

Por décadas, o Rio de Janeiro conviveu com a ideia de que a violência urbana é parte da paisagem. A naturalização das armas, dos tiroteios, das rotas interditadas e das mortes diárias se consolidou como uma anomalia que deixou de chocar – e, como ensinou Émile Durkheim, fundador da sociologia moderna, o momento em que o patológico se torna normal é o instante em que uma sociedade começa a adoecer profundamente.

Fique por dentro das notícias que importam para você!

SIGA O ESTADO DE MINAS NO Google Discover Icon Google Discover SIGA O EM NO Google Discover Icon Google Discover


A territorialização do crime no Rio não é apenas uma questão de segurança pública: é uma patologia social e política, resultado da corrosão prolongada dos mecanismos de solidariedade e da incapacidade das instituições de exercerem de forma integrada o monopólio legítimo da força. O ex-deputado Alfredo Sirkis, pioneiro do movimento ambientalista e ex-militante da resistência armada, diagnosticou o fenômeno há décadas: “Os traficantes têm uma topografia adequada, uma base social enraizada e uma fonte inesgotável de financiamento”.


A tríade território, sociabilidade e economia ilícita permanece como o eixo estruturante do poder paralelo no Rio. É a anatomia do patológico: o crime como forma de organização social e o Estado como presença intermitente, frequentemente infiltrado no aparelho de segurança e na política. Não existe crime organizado sem a participação de agentes públicos.


O outro lado da megaoperação nos complexos do Alemão e da Penha, que mobilizou 2,5 mil agentes e deixou 64 mortos e 81 presos, é uma manifestação extrema dessa disfunção. O governador Cláudio Castro (PL) a definiu como “a maior operação de segurança da história do Rio” e classificou os traficantes como “narcoterroristas”. O emprego de blindados, helicópteros e drones expôs uma lógica de guerra interna, em que o inimigo não é um exército estrangeiro, mas cidadãos brasileiros. A reação das facções foi imediata: bloqueios de vias, ônibus queimados e o colapso da mobilidade urbana. O Rio viveu um dia de medo e caos.


A topografia da violência – becos intransitáveis, casas irregulares, zonas de exclusão – formou uma geografia própria: os “complexos” são “cidades dentro da cidade”, onde o Estado perdeu soberania. O medo tornou-se política de controle. Em As regras do método sociológico, Durkheim afirma que toda sociedade convive com um certo grau de crime, o que ajuda a delimitar a norma e reforçar a coesão moral. O problema surge quando o desvio se torna regra e o crime, instituição.


No Rio, a violência é um modo de regulação social: o tráfico impõe leis, administra conflitos e oferece “segurança” a quem o Estado abandona. A anomia — ausência de normas comuns — dá lugar ao medo como norma. O outro lado dessa moeda são as milícias, formadas por policiais e ex-policiais, que emulam com os traficantes o controle do comércio local e da economia informal. Às vezes, a polícia entra em campo quando a milícia perde território para os traficantes.

Degradação moral

O confronto de ontem, com drones lançando bombas e barricadas em dezenas de bairros, mostrou que o Comando Vermelho adquiriu capacidade simbólica e operacional de desafiar o Estado. Ainda assim, o debate político seguiu o roteiro conhecido: o governador alegou enfrentar o crime “sozinho” e culpou o governo federal. O Ministério da Justiça rebateu, listando 11 solicitações atendidas, o envio da Força Nacional, repasses de R$ 474 milhões e 10 vagas em presídios federais para líderes de facções. Desde 2023, a União contabiliza 178 operações da PF e PRF, com 210 prisões, 10 toneladas de drogas e 190 armas apreendidas.


O embate público entre os dois níveis de governo revela a fragmentação do sistema político. A segurança pública transformou-se em arena de disputa entre entes federativos. A cooperação cede à rivalidade. O Estado se divide diante do crime. O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, bem que tentou implantar o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), mas os governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) e de Goiás, Ronaldo Caiado (União), principalmente, lideraram a resistência à centralidade da União no combate ao tráfico de drogas, com apoio de Claudio Castro (PL).


A pesquisa do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF (GENI) e do Instituto Fogo Cruzado mostra que o Comando Vermelho ampliou em 8,4% seu controle territorial entre 2022 e 2023, dominando 51,9% das áreas sob poder criminoso, à frente das milícias. São mais de 240 km² de território regido por regras extralegais — uma redistribuição informal de soberania dentro da metrópole. A patologia não é apenas criminal, mas institucional e moral.


“Narcoterrorismo” e “guerra justa” são narrativas opostas ao raciocínio. O fechamento de escolas, a paralisia do transporte e o pânico coletivo são sinais de uma sociedade em exaustão cívica. Enquanto o poder público atuar apenas de modo reativo, o tráfico continuará a ocupar o vácuo da ausência de políticas de habitação, educação e mobilidade.


A indiferença em relação ao crime organizado é o último estágio da degradação moral. Durkheim via no patológico um alerta de que uma sociedade precisa se reorganizar. O Rio chegou a esse ponto. Facções e milícias já não são apenas organizações criminosas, são instituições paralelas que impõem regras, exploram economias e moldam comportamentos. Sem falar na crescente influência política que já exercem. A megaoperação do Alemão e da Penha, embora justificada pela necessidade de conter o avanço do Comando Vermelho, expõe uma verdade: o Estado luta para reconquistar territórios que nunca deveria ter perdido.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

Tópicos relacionados:

crime-organizado politica rio social

Acesse o Clube do Assinante

Clique aqui para finalizar a ativação.

Acesse sua conta

Se você já possui cadastro no Estado de Minas, informe e-mail/matrícula e senha. Se ainda não tem,

Informe seus dados para criar uma conta:

Digite seu e-mail da conta para enviarmos os passos para a recuperação de senha:

Faça a sua assinatura

Estado de Minas

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Aproveite o melhor do Estado de Minas: conteúdos exclusivos, colunistas renomados e muitos benefícios para você

Assine agora
overflay