
No Japão, idosos matam, morrem ou vão para a prisão por abandono
No Japão, o abandono virou estatística: idosos presos, mortos ou esgotados cuidando uns dos outros. O Brasil assiste ao futuro sem se preparar
Mais lidas
compartilhe
SIGA NO

Na semana passada, revi o filme A Balada de Narayama. Vencedor de diversos prêmios — entre eles a Palma de Ouro em Cannes (FR) em 1983 e o Prêmio da Academia Japonesa de Filme do Ano —, trata-se de um remake da versão de 1958. O longa retrata a prática do obasute, em que idosos com mais de setenta anos são levados ao Monte Narayama para morrer, como forma de aliviar o peso sobre as famílias em uma aldeia pobre no norte do Japão. O objetivo é garantir que os mais jovens possam sobreviver com o alimento colhido nos próprios campos.
O filme se passa em um Japão miserável, onde meninas recém-nascidas são deixadas para morrer ao relento — uma forma brutal de evitar mais bocas para alimentar. O roubo é punido com a morte: os culpados são enterrados vivos. Aos idosos, resta aceitar a subida ao Monte Narayama como uma espécie de missão espiritual — ainda que signifique serem deixados para morrer, sozinhos, em meio ao frio e à solidão da montanha. O sentimentalismo é banido: não há espaço para fragilidade onde impera a lógica da escassez.
Atualmente, o Japão — país mais longevo do mundo — enfrenta uma nova tragédia silenciosa. Frequentemente descrita pelos meios de comunicação como uma “bomba-relógio demográfica”, ela representa um desafio grave e urgente.
Leia Mais
No Japão, cresce o número de crimes cometidos por idosos — não por maldade, mas por sobrevivência. Com 20% da população 65+ vivendo na pobreza, muitos veem na prisão o único lugar onde ainda recebem comida, abrigo e atenção. O abandono familiar e a solidão agravam o quadro: ao sair, não têm para onde ir. Algumas detentas idosas preferem continuar presas a enfrentar a indiferença do lado de fora. A criminalidade entre os mais velhos escancara uma ferida profunda: estamos vivendo mais, mas cuidando cada vez menos.
- 6 dicas para lidar e cuidar dos seus pais durante o envelhecimento
- 10 coisas que toda família deve saber sobre envelhecer com dignidade
A tragédia do envelhecimento no Japão não se limita ao abandono e à prisão. Em média, a cada oito dias, um idoso é morto por um parente cuidador exausto. O dado vem de uma pesquisa conduzida pela professora Etsuko Yuhara, especialista em bem-estar social da Universidade Nihon Fukushi, que batizou esse fenômeno de care killing. Em dez anos, ela identificou 443 mortes — número que pode ser ainda maior se considerados os episódios não fatais. A maioria dos casos envolve cônjuges, pais e filhos. São situações-limite de colapso familiar. Quase 30% dos cuidadores têm mais de 70 anos e cuidam, sozinhos, de parentes dependentes. Sem apoio, isolados e sem perspectiva, alguns chegam ao limite: matam quem cuidam — e depois tiram a própria vida.
O que o Japão pode fazer para reagir ao envelhecimento da sua população? Seria parte de um fenômeno mundial? E o que outros países podem aprender com essa crise — inclusive o Brasil?
Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia
O Brasil ainda não chegou a esse ponto, mas caminha rapidamente na mesma direção. Somos hoje mais de 32 milhões de pessoas com 60 anos ou mais, e até 2050 esse número deve dobrar. A pirâmide etária está se invertendo diante dos nossos olhos — mas o modelo de cuidado continua baseado em uma estrutura familiar fragilizada, com aposentadorias insuficientes, apoio público escasso e mulheres sobrecarregadas com a responsabilidade do cuidado. Ignorar essa transição demográfica é repetir os erros que hoje colapsam o Japão. O futuro está logo ali, batendo à porta — e a pergunta urgente não é se vamos envelhecer, mas como vamos cuidar de quem envelhece.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.