Jéssica Balbino
Jéssica Balbino
Jornalista e curadora de eventos literários no Brasil, escreve sobre corpos dissidentes. Criadora do Margens, projeto que difunde conteúdo sobre mulheres periféricas na escrita.
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Desfetichizar a dor: estratégias para fabular existências

Entre o luto coletivo e a imaginação radical, o realismo mágico das periferias aponta caminhos para desfetichizar a dor e fabular existências negras

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Ontem à noite, no Sesc Poços de Caldas, fui atravessada por uma cena que se repete historicamente, mas que, quando colocada em palavras -  em voz, em corpo, em presença -  reacende a pergunta que nos move: o que fazemos com a dor para que ela não nos devore?

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Na mesa “Assombros e encantamentos: o realismo mágico das periferias”, com curadoria sensível e afiada de Maíra Carvalho e mediação de Marianne David, os escritores Lucas Santos e Dinha lembraram ao público que escrever sobre a violência não é necessariamente fetichizá-la; às vezes, é disputar suas narrativas e, sobretudo, fabular existências para além do que tentaram nos destinar.

Lucas, autor de Rua das Águas Encantadas, voltou no tempo para iluminar o presente: Poços de Caldas como território aquilombado, com histórias que nascem da fuga, da resistência e da invenção. O bairro do Botafogo enquanto quilombo, a Cascatinha e Santa Rita como espaços de aquilombamento, a Congada e a festa de São Benedito como liturgias negras que insistem no mundo quando o mundo insiste contra nós. “Tem dor e sofrimento, mas também tem alegria, jeito pra se reinventar”, ele disse, e talvez esteja aí o nervo mais pulsante: a reinvenção como ferramenta política e poética.

Dinha, uma das vozes mais contundentes da literatura marginal brasileira, autora de Dominó de Ossos (Me Parió Revolução), fez da monstruosidade um espelho e uma trincheira. Ao escrever monstros, zumbis, criaturas desconcertantes e mágicas, ela não foge da violência -  ela a revira, a costura, a recusa como destino.

“A literatura marginal entra na minha vida porque sou assim, estou dentro disto e não tem como fugir de mim mesma. Não teria como dizer que escrevo literatura branca, enquanto mulher negra, marginalizada e com a minha realidade”. Entre o horror e o encantamento, Dinha sabe, como Christina Sharpe nos ensina em “Notas Ordinárias”, que viver sob o peso de uma história de naufrágio não significa aceitar afogamento. Significa aprender a respirar no escuro.

E talvez o escuro seja também território ritual. Escrevo este texto entre o rastro do Halloween e a aproximação do Dia dos Mortos. Enquanto uma parte do mundo fantasia monstros que se desmancham ao amanhecer, nós lidamos com monstros reais, institucionalizados, armados.

Corremos das lendas urbanas que ameaçam nossas existências. Enquanto bruxas viram fantasia nos shoppings, lembramos que bruxas, na nossa história, foram mulheres que ousaram sobreviver: parteiras, benzedeiras, curandeiras, mães de santo, escritoras que desafiam o massacre pela palavra. Mulheres que, como Dinha, transformam repressão em fabulação.

Mulheres que dançam com a morte, mas não para celebrá-la — e sim para encará-la de volta, como quem diz: você não vai me levar fácil. Se o horror sempre tentou nos devorar, aprendemos a conjurá-lo. A rir dele. A atravessá-lo. Nossa maior bruxaria é viver nossa vida, dia após dia. 

E talvez o verbo seja esse: respirar. Porque enquanto celebrávamos a força fabulatória dessas narrativas, ecoava o massacre no Complexo da Penha, no Rio de Janeiro, onde mais de uma centena de pessoas foram mortas em uma operação policial.

Corpos negros espalhados, exibidos, estetizados pela lente da violência estatal, como se ainda estivéssemos presos à cena colonial, onde o corpo preto é exibido para reafirmar poder e controle. Não estamos falando de metáfora.

Estamos falando de estatística: em 2023, 83% das pessoas mortas pela polícia no Brasil eram negras, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Estamos falando de política: estados que tratam territórios como inimigos, e vidas negras como descartáveis.

E estamos falando de imaginação, também, porque se o Estado insiste em nos imaginar sempre mortos, precisaremos insistir em imaginar-nos vivos. Saidiya Hartman, em “Perder a Mãe” e “Vidas Rebeldes, Belos Experimentos” nos lembra que fabular é um direito quando os arquivos da violência negam nossa humanidade.

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Fabular não como fuga, mas como reparação simbólica. Como tática de sobrevivência. Como gesto radical contra o esgotamento da dor como imagem pública. Fabular é criar territórios onde nossos mortos não sejam apenas números, mas ancestrais. Onde nossa carne violentada possa também ser casa, dança, riso, futurologia preta.

Percival Everett, em As Árvores, faz isso com ironia cortante: devolve o horror ao sistema que o produz, desmontando o mito da neutralidade do racismo estrutural com humor ácido, com imaginação furiosa. A ironia, nesse caso, não é alívio; é afiação.

Desfetichizar a dor significa não negar a violência, mas não deixá-la ser a única narrativa possível. Significa apostar em mundos onde nossos corpos não são forçados à pedagogia do sofrimento para serem cridos. Significa lembrar que, apesar das reescritas do terror, seguimos dançando Congada, batendo tambor, inventando caminhos e escrevendo ficção que rasga o real para costurar futuros.

Saí da mesa de quinta-feira (30), essa véspera de Dia dos Mortos, com a certeza de que fabular é verbo urgente. Não para negar a tragédia, mas para impedir que ela seja a única coisa que nos definirá -  e para lembrar que, mesmo cercadas por monstros, às vezes somos nós que sabemos nomeá-los, rir deles, expulsá-los, criar encantamento em meio ao escombro.

Como disse Marianne ao encerrar a conversa: falar da periferia não pode ser pauta apenas quando o sangue escorre. E como nos lembraram Lucas e Dinha, quando escrevemos a partir do corpo, mesmo ferido, inventamos novas peles, novos mitos, novas sobrevivências.

No fim, talvez seja isso: fabular não para escapar da dor, mas para recusar que ela seja espetáculo. Para devolvê-la ao lugar íntimo, político, ritual - e, a partir dele, erguer outra coisa. Uma existência que não precise posar de mártir para existir. Uma vida que samba, que assombra, que encanta, que insiste.

E insiste.

E insiste.

Porque se o futuro que querem nos dar é cova, faremos dele floresta.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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