
Corpos insurgentes e Brasil em chamas: sobre Aranha Movediça, de Moacir Fio
Entre o punk e o mito, livro reconstrói o Brasil pelos corpos, dos jovens incendiados nas periferias de Fortaleza às mulheres-feitiço do sertão
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Há livros que parecem arder na mão de quem os lê. Aranha Movediça (Moinhos, 2025) é um deles. Moacir Fio costura, com a precisão de quem conhece o sertão e as cicatrizes do país, uma narrativa que une tempos, lendas e corpos políticos. A Fortaleza punk dos anos 1980, marcada por violência policial, juventude incendiada e uma "falsa redemocratização” se encontra com o sertão mítico de Cococi, esse corpo de cidade fantasma do Ceará, onde as ruínas coloniais guardam ecos de mulheres que se transformam em fera, suçuarana, Matinta Perera, em vento, em maldição.
Em tempos de Halloween, ou Dia das Bruxas, falar de horror é algo que me move. Mas não só. Eu gosto disso o ano todo, é verdade. E o fato de o livro começar com um podcast de true crime investigando a misteriosa morte de um punk dos anos 1980 já é motivo para lá de suficiente para me convencer a ler. E permanecer. E querer vir aqui e escrever sobre.
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Viro, praticamente, uma Testemunha de Jeová da obra: pregando para quem cruza meu caminho a palavra de Moacir Fio e suas lendas e horrores do sertão cearense.
Corpos que resistem
Desde os primeiros capítulos, é o corpo que dá o tom: corpos que apanham, que desejam, que queimam, que desaparecem e reaparecem em outras peles. O corpo de Jota do Lixo - punk, pobre, negro - se confunde com o da cidade; o corpo de Maca - menina, cantora, enlouquecida, preso há décadas na própria cama e cabeça - é a própria alegoria da mulher em transe, interditada, mas que resiste pela arte. São corpos politizados, dissidentes, insurgentes e atravessados pela repressão, mas também pela pulsão de vida que insiste em existir à margem.
No fundo, o livro fala dessa juventude que não se encaixa na narrativa da “redemocratização”, essa que, nos anos 1980, prometia liberdade enquanto a polícia seguia prendendo, batendo e silenciando corpos dissidentes. Moacir Fio faz do punk um arquivo da insubmissão: um grito rasgado que reverbera até hoje nas vielas e nos becos onde o Brasil insiste em esquecer seus filhos.
Para mim, que sou devota da literatura marginal e periférica, posso dizer: temos uma da mais altíssima qualidade. E não só: temos uma literatura do insólito, do gótico, do mítico, do realismo mágico. Temos uma baita obra que se debate para cruzar as fronteiras imaginárias - ou nem tanto - do mercado editorial que separam a “boa” literatura feita no sul e sudeste da que é feita no nordeste. Se cruzarmos a linha que nos divide em regiões, temos o que procuramos: um livraço.
E, novamente, meu assunto obsessão: esses corpos que insistem.
A chegada da moça, a cigana, a suçuarana
Ao mergulhar nas origens do sertão, o autor convoca a ancestralidade: Josefa, a moça enclausurada; a cigana que lê o destino; a suçuarana, felina e feroz; a Matinta Perera, que no livro não aparece com este nome, voz aguda das matas. São presenças femininas que habitam as frestas entre o humano e o animal, entre o sagrado e o profano. Cada uma delas encarna o poder de um corpo que não se dobra e que, por isso, é perseguido, amaldiçoado e queimado.
Essas figuras - meio mulheres, meio fera - representam a continuidade do feminino como território de força e de feitiço. Elas rompem com a ideia cristã do corpo domado e expõem a potência bruta da carne, da terra e do desejo. A lenda, em Aranha Movediça, é carne viva: uma herança de resistência.
A cidade como corpo abandonado
Entre o sertão mítico e a Fortaleza urbana, está Cococi, uma cidade que virou ruína, localizada no distrito de Parambu, na região dos Inhamuns, corpo vazio, carcaça de um Brasil que apodreceu por dentro. Moacir Fio transforma esse lugar em símbolo daquilo que o país abandona: a memória, a justiça, os corpos marginalizados. Cococi é o Brasil depois do incêndio.
Realismo mágico, insólito e horror
A escrita de Moacir Fio é movediça como o título. Transita entre o realismo mágico, com suas criaturas e assombrações e o horror social, que não precisa de monstros para existir. Seu estilo mistura o documento e o delírio, o podcast investigativo e o romance gótico. O resultado é uma narrativa que pulsa entre a história e o mito, entre o arquivo e o feitiço.
Ao final, Aranha Movediça é sobre o Brasil que nunca deixou de queimar: nas favelas, nos sertões, nos corpos que insistem em existir. É sobre as mulheres que urram, os punks que sangram, as ciganas que preveem, as suçuaranas que caçam, e as cidades que morrem de abandono.
Um livro que nos lembra que toda lenda nasce de uma ferida - e toda ferida, quando aberta, pode se tornar revolução.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.