
Minha obsessão pelo corpo expandido para a página
Projetos literários de Beatriz Aquino e Will Moreira ativam bibliotecas do Sul de Minas como territórios de escrita, memória e reinvenção
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É uma obsessão. Não tem outro nome para o que sinto em relação ao tema: livros e corpos. É por onde navego, há um bom tempo, e talvez onde encontro um pouco de pulsão de vida para seguir acreditando que há algo a ser feito no mundo. Por isso, inclusive, escrevo.
Hoje é dia 15 de outubro, Dia dos Professores. E, mais do que homenagear quem ensina entre quadros e cadernos, quero celebrar aqueles que, com seus corpos, vozes e palavras, transformam a literatura em prática viva, no chão das bibliotecas públicas, entre cadeiras de leitura, rodas de conversa e oficinas onde a escrita deixa de ser mero exercício individual para tornar-se ato coletivo, político e profundamente encarnado.
Tenho valorizado, cada vez mais, iniciativas que pensam no coletivo - e em trabalhar o trauma como memória, de forma a ressignificar tudo que precisamos para seguirmos adiante, colorindo nossas existências com algo mais palatável. É o pensamento da arte como ponte.
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Escrevi sobre isso aqui e também aqui, sobre a criação de clube Meu Corpo Sou Eu, que parte de literatura feita por pessoas gordas, com personagens gordas, para serem discutidas e conversadas num clube mediado por mim e por Néli Simioni, que também divide a curadoria comigo e que, pensamos juntas, formas de espalhar essa literatura e conversar com quem tem urgências corporais a serem ditas - e escritas.
Nesta semana e também no próximo mês, duas artistas do Sul de Minas — Beatriz Aquino e Will Moreira, levam seus projetos literários itinerantes para quatro cidades da região, o que me faz pensar, cada vez mais, em como a coletividade é nosso melhor caminho.
Em projetos distintos, mas que se encontram quando falamos de corpos, de literatura de ruptura, de dissidência,de propor algo novo a partir da dilacerante dor de existir e habitar um corpo que não pode, elas estão propondo encontros onde escrita, corpo e memória se entrelaçam.
Mais do que oficinas, são experiências que ativam espaços comunitários, abrindo frestas para que corpos dissidentes, trans, violentados e resistentes se encontrem, nomeiem suas histórias e compartilhem modos próprios de existir no mundo.
Falas que destroem o silenciamento
No projeto “Fala, Mulher! – Itinerância sobre narrativas femininas”, Beatriz Aquino parte de sua própria trajetória para construir pontes com outras mulheres e pessoas não-binárias.
Escritora, atriz e dramaturga, ela percorre bibliotecas de Itajubá (17/10) e Andradas (28/11) com rodas de conversa e oficinas que nascem do romance "Fundo" (Laranja Original, 2023), um livro profundo, aquático, onde memória e trauma se entrelaçam em uma linguagem poética e densa.
Logo nas primeiras páginas, Beatriz convoca a leitora para dentro de um mergulho sem retorno: “Seus pés batiam vigorosamente na água, tentavam projetar o corpo para a superfície. Tentava chegar até a luz que indicava o final da água, o começo do ar. A borda. A margem”
Essa imagem inaugural — uma mulher tentando emergir do fundo — ecoa como metáfora potente para tantas vidas. "Fundo" é romance, testemunho e fábula. Um corpo que afunda e emerge, que lembra, narra e denuncia: a violência sexual na infância, a estrutura patriarcal familiar, os silêncios impostos às meninas, a persistência em transformar dor em palavra.
“Onde minha palavra não basta, a arte e a escrita vêm e resolvem, alcançam. Isso aqui é algo muito poderoso”, afirma a autora, ao lembrar do momento em que contou sua história em voz alta, no palco, diante da própria família.
O projeto tem acessibilidade em Libras e oferece monitoria infantil — elemento fundamental para permitir que mulheres e pessoas cuidadoras possam participar das atividades com tempo e presença integrais. São detalhes, como esse, que mostram como literatura e pedagogia podem caminhar juntas, com cuidado e política, abrindo espaços reais de escuta e criação.
Poesia como corpo expandido
Enquanto Beatriz mergulha nas águas da memória, Will Moreira tensiona as margens da linguagem. Pessoa transfeminina não-binária, a autora inicia a circulação de “Substanciar – circuito poético” em outubro e novembro, passando por bibliotecas de Pouso Alegre (18/10) e Varginha (29/11) com rodas de conversa e oficinas de poesia experimental.
Seu livro "Substanciar" (Estância Projetos Editoriais, 2023) é uma obra-rizoma, onde palavra, traço e silêncio constroem paisagens visuais que fogem à linearidade. Substanciar é um convite para que você experimente um olhar diferente sobre a poesia, sobre a leitura e sobre a relação leitor e obra.
Nas páginas, as palavras se desdobram verticalmente, atravessam o branco, racham regras tipográficas e propõem novas arquiteturas de leitura. O livro pulsa como corpo em movimento, ou melhor, como muitos corpos, contraditórios e vibrantes.
Ao levar essa experimentação para dentro das bibliotecas públicas, Will transforma esses espaços, muitas vezes vistos como lugares silenciosos e passivos, em terrenos férteis de invenção. “Espero que as pessoas que participem possam se divertir, antes de mais nada, mas que também venham abertas a olhar para a palavra, a escrita e a leitura de formas diferentes, que fogem da norma da poesia tradicional”, diz a autora.
Bibliotecas como espaços de encontro
Tanto em "Fundo" quanto em "Substanciar", a literatura nasce do corpo, seja ele o corpo que lembra e denuncia, seja o corpo que inventa novas formas de dizer. E é justamente por meio desses corpos que as bibliotecas se tornam espaços vivos, de encontros múltiplos: entre leitoras e autores, entre passado e presente, entre dor e criação, entre palavra e silêncio.
Essas ações itinerantes - viabilizadas por políticas públicas de fomento à cultura - têm um significado especial neste Dia dos Professores. São práticas que ensinam sem escolarizar, que formam repertórios críticos ao mesmo tempo em que acolhem afetos e experiências. Oficinas, rodas de conversa e experimentações poéticas tornam-se salas de aula expandidas, onde aprender e ensinar se confundem com viver e resistir.
Num país em que corpos trans, femininos, gordos e dissidentes são sistematicamente violentados e silenciados, projetos como os de Beatriz Aquino e Will Moreira mostram que a literatura pode ser uma pedagogia da presença: estar, sentir, escrever, existir.
Assim, entre águas profundas e poemas que explodem margens, esses encontros celebram a potência da palavra como ferramenta de transformação coletiva. Porque ensinar também é isso: criar mundos possíveis com quem insiste em existir.
Serviço
Fala, Mulher! – Beatriz Aquino
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Onde: Itajubá – Biblioteca Municipal Antônio Magalhães Lisboa
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Quando: 17 de outubro
- Horário: 14h
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Onde: Andradas – Biblioteca Pública Municipal Délia Maria Risso de Souza
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Quando: 28 de novembro
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Horário: 14h
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Valor: Gratuito
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Classificação: 16+ | Acessível em Libras | Monitoria infantil disponível
Substanciar – circuito poético, com Will Moreira
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Onde: Pouso Alegre - Biblioteca Municipal
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Quando: 8 de outubro 10
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Horário: 14h
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Onde: Varginha – Biblioteca Municipal
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Quando: 29 de novembro
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Horário: 14h
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Valor: Gratuito
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Classificação: 15+ | Acessível em Libras
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.