
Engordei minha estante para caber em mim
Com livros engordurados, "Meu Corpo Sou Eu" inicia ciclo de leituras com orgulho, sem dieta e conversa entre pessoas de todos os lugares
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Como boa Millennnial que sou, sempre quis ter um clube do livro para chamar de meu. Leitora voraz desde os cinco anos, usei a literatura para driblar a falta de irmãos convivendo na mesma casa, a gordofobia sofrida nos espaços públicos e a solidão. Encontrei nos livros a chance de imaginar, radicalmente, formas de existir. Deu certo. Tão certo que, após idas e vindas com a palavra, consegui juntá-la ao meu corpo e ser o que sou: alguém que escreve sobre corpos dissidentes e vive no mundo, ora rebolando, ora lendo.
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Mas, faltava algo: livros que tivessem personagens gordas. Livros que falassem de pessoas gordas. Livros escritos por pessoas gordas. Livros engordurados. Livros teóricos, mas não só. Livros com vivências. Livros com pessoas reais. Livros capazes de fomentar imaginários outrora negados pelas protagonistas brancas, cis, magras e líderes de torcida.
Demorei ao menos 30 anos para me encontrar com obras como “Fome” da Roxane Gay, “Meu Corpo, Minhas Medidas”, da Virgie Tovar e “A Gorda”, da Isabela Figueiredo, por isso, foi com elas que minha amiga e jornalista Néliane Simioni e eu abrimos o clube do livro “Meu Corpo Sou Eu” (que é também o nome do projeto dela, com um podcast, conheçam aqui), para lermos, em grupo, obras que tratem dos corpos, sobretudo, os corpos gordos. Em resumo, engordei minha estante para caber em mim.
E foi assim, à sombra da existência de uma vida toda vivida cheia de esqueletos no armário e histórias à memória e à criatividade, que unimos mulheres de diferentes partes do Brasil - e do mundo - temos uma participante queridíssima de Portugal, que nos encontrou por acaso na internet e frequenta os encontros - para falar da literatura produzida acerca dos nossos corpos.
Distante de personagens estereotipados como Leitão, de Raphael Montes, em Jantar Secreto, que é o que de pior pode existir em uma pessoa, com cenas de comida que beiram à animalidade, decisões duvidosas e o reforço a qualquer coisa ruim que possa ser ligada a uma pessoa gorda, de forma óbvia, visitamos histórias íntimas de mulheres que escrevem com o corpo todo.
Que trazem a repugnância e o choque não pela ótica de uma pessoa magra escrevendo sobre corpos gordos que ela sente nojo e faz questão de explicitar na fantasia, mas pela escrevivência ou autoficção, como queiram chamar, bastante engordurada, suja, escancarada. E pega pelo ponto fraco: a gordofobia.
Aliás, importante dizer que foi a gordofobia que fez de mim a intelectual que sou. A leitora que sou. A pessoa que vos escreve. A curadora de literatura que sou. Foi a repulsa da sociedade com meu corpo que me empurrou para este universo. E ainda bem. Porque é através dele e da imaginação radical que crio outros. E encontro parceiras que topam o mesmo.
Um clube do livro gordo
Tem livro que a gente lê com os olhos, tem livro que a gente lê com o fígado. Mas tem aqueles que a gente só consegue ler com o corpo inteiro — os livros que nos atravessam, como uma flecha, e que também costuram. Que nos mostram que a ferida não é individual. Que o que dói em mim pode ecoar no outro. Que escrever é também um modo de respirar. E que ler é mais que um gesto intelectual: é uma forma de pertencimento.
É por isso que insisto tanto na importância de leituras que nascem de corpos. De corpos que escrevem a partir das suas cicatrizes, dos seus desejos, das suas resistências. De corpos dissidentes, pretos, gordos, trans, periféricos, que desafiam o cânone e fazem da palavra um abrigo. É disso que se trata o Clube do Livro “Meu Corpo Sou Eu”.
No clube, ninguém está disputando erudição. Estamos, juntas, lendo para desorganizar. Para rir de nervoso, para chorar de susto, para sentir um alívio raro que só a escuta compartilhada pode proporcionar. É corpo na roda, é voz na tela, é afeto na palavra.
Não é um clube para entender o outro. É para deixar o outro existir. E para, quem sabe, fazer as pazes com a nossa própria existência também.
Neste segundo ciclo, seguimos com uma programação que parece uma travessia. De Valeska Zanello a Carmen Maria Machado, passando por Malu Jimenez, Mariana Salomão Carrara e Rafaela Ferreira, as autoras convocam a pensar no corpo como arquivo, território e denúncia. E também como possibilidade de prazer, de fúria e de invenção.
A cada encontro, emerge uma certeza: o corpo não é só aquilo que vemos. É também aquilo que sentimos quando o outro conta sua história e algo dentro de nós reconhece. É a marca que a leitura deixa. E que, às vezes, só quem já foi lido com desprezo entende o que significa ser finalmente lido com cuidado.
Porque não basta estar no mundo: a gente quer caber nele. E, mais ainda, quer escrever — e ler — um mundo que caiba em nós.
A programação do clube reúne autoras contemporâneas que abordam, com diferentes estilos e perspectivas, o modo como os corpos – especialmente os de mulheres e pessoas gordas – são atravessados por discursos sociais, afetivos e políticos. As obras que compõem este ciclo são A prateleira do amor, de Valeska Zanello, Se Deus me chamar não vou, de Mariana Salomão Carrara, Lute como uma gorda, de Malu Jimenez, Eu só cabia nas palavras, de Rafaela Ferreira e O corpo dela e outras farras, de Carmen Maria Machado.
Os encontros acontecem uma quarta-feira por mês, das 19h30 às 21h30, com participação livre: é possível adquirir encontros avulsos ou o pacote completo com desconto.
E o mais legal: com política de escuta e acolhimento, o clube oferece bolsas integrais para pessoas gordas, negras, indígenas, PCDs e mães solo. A cada cinco inscrições pagas, uma bolsa é gerada. Quem tiver interesse, pode escrever para meucorposoueu@gmail.com para solicitar sua participação.
Agenda dos encontros
16 de julho – A prateleira do amor, de Valeska Zanello
13 de agosto – Se Deus me chamar não vou, de Mariana Salomão Carrara
10 de setembro – Lute como uma gorda, de Malu Jimenez
15 de outubro – Eu só cabia nas palavras, de Rafaela Ferreira
12 de novembro – O corpo dela e outras farras, de Carmem Maria Machado
Serviço - Mais informações podem ser acessadas no https://bit.ly/clubedolivromeucorposoueu
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.