
Coletivo LGBTQIAPN+ denuncia falha em repasses da LPG estadual
No mês do orgulho, descaso institucional, desorganização e drama marcam frustração de coletivo aprovado em edital e o não recebimento de verba pública
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Poços de Caldas tem paisagens encantadoras, águas termais e agora também mais um episódio digno de Kafka — com toques mineiros, claro. No centro da questão está o Coletivo LGBTQIAPN+ que ousou, veja só, querer realizar uma feira multicultural financiada por verba pública. Mais especificamente, pela Lei Paulo Gustavo (LPG), no edital 10/2023 da Secretaria de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais (SECULT-MG). O resultado? Um drama em capítulos que mistura descaso institucional, burocracia labiríntica e silenciamento no mês em que se diz celebrar o orgulho.
A proposta da 1ª Feira Multicultural LGBTQIAPN+ de Poços de Caldas foi inscrita em novembro de 2023. A pontuação inicial, 80,5, colocou o projeto como suplente. Após recurso, aprovado, a nota subiu para 83. Nada mal. Mas era só o começo da saga. Em outubro de 2024, a SECULT convocou alguns suplentes e — glória! — avisou por e-mail e redes sociais. O projeto de Poços? Não foi chamado. Tudo certo, seguimos.
Mas então veio a segunda convocação. E aqui começa o espetáculo do absurdo: o coletivo não recebeu nenhum aviso. Nem um e-mail, nem um post, nem um sinal de fumaça. Souberam da contemplação por terceiros — no último dia do prazo de habilitação. Correria, tensão, documentos enviados corretamente (comprovado!). Só que a plataforma SEI (sseeeeeiii) alegou que os papéis foram parar na “unidade errada”, a alegação de que foi enviado pra unidade errada foi apenas no segundo envio, após a nova orientação no Whatsapp. E como bons mineiros, os integrantes do coletivo foram tentar entender.
Refizeram o envio, seguindo orientações recebidas... pelo WhatsApp da SECULT. Sim, é isso mesmo que você leu. WhatsApp. Já dá pra imaginar o print correndo em grupo de zap com legenda em caixa alta: "GENTE, DEU RUIM?". Enfim. Dias depois, nova confusão. O processo foi parar no Fundo Estadual de Cultura (FEC), que nada tem a ver com a LPG. Desde então, o que se viu foram tentativas frustradas de contato por telefone, e-mail, sinais de vida. Respostas vieram aos trancos e barrancos, como aquela velha internet discada: um "Fulano vai ver", "Ciclano vai analisar", "O Minc vai avaliar", "O superintendente saiu", "A subsecretária vai verificar".
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No meio disso tudo, uma reunião foi marcada e gravada pela SECULT — mas a gravação nunca foi entregue ao coletivo. E se Kafka já tinha dado as caras, agora entra Orwell: a informação existe, mas você não pode acessá-la. Porque sim. Ou porque talvez alguém tenha perdido o login.
O caso foi parar na Ouvidoria do Estado e também, supostamente, no Ministério da Cultura. O prazo dado para uma resposta era de 50 dias. Já se passaram mais de 100. E a feira? Segue no limbo institucional. O orgulho? Segue ferido.
O que está em jogo aqui não é apenas um repasse financeiro perdido. É a mensagem cifrada que se manda quando um projeto LGBTQIAPN+ enfrenta, reiteradamente, mais obstáculos que os outros. Quando a burocracia se dobra sobre si mesma, afogando iniciativas de diversidade com exigências contraditórias, prazos opacos e respostas fantasmas.
A feira visava reunir artistas, pensadores, criadores e criadoras da comunidade em um espaço afirmativo e necessário. Ao que tudo indica, o crime foi justamente esse: querer existir no espaço público. E resistir com cultura. Todos os suplente convocados já receberam o recurso e executaram seus projetos. Enquanto isso o nosso nessa labuta.
No mês de junho, no dia 2, a Ouvidoria decidiu não acolher mais o caso, quando se multiplicam os arcos-íris corporativos, os likes performáticos e os discursos de inclusão nas redes, o caso de Poços de Caldas escancara o abismo entre o discurso e a prática. Entre a vitrine e o porão.
Ao fim, talvez o projeto ainda receba o recurso. Talvez. Não! Mas o que fica é a constatação de que, quando se trata de corpos dissidentes, a máquina pública é ainda mais lenta, confusa e, por vezes, convenientemente surda.
Enquanto isso, o coletivo segue de pé. Até hoje sem saber o que de fato aconteceu. Não houve qualquer explicação. E o coletivo segue documentando, organizando, lutando. Porque não é só sobre uma feira. É sobre a dignidade de se fazer cultura, de forma justa, transparente e plural.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.