Juventude não é plástica. É risco
A humilhação existencial se resume ao 'segredo da juventude' sendo vendido em frascos, seringas e filtros de rede social
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As grandes questões da humanidade sempre foram a matéria de trabalho da filosofia. No entanto, não falamos aqui de um ente abstrato, distante, universal — “a humanidade” —, mas de cada ser humano que carrega em si essa substância que se revela, também, particular, individual, angustiadamente singular. Nos dilemas humanos, compartilhamos nossas vidas — únicas, irrepetíveis e intransferíveis.
O teatro grego celebrava o imponderável quando encenava a tragédia, como se quisesse nos lembrar do “milagre” de estarmos aqui e, como um grão levado pelo vento, da fragilidade de uma existência fadada a terminar em qualquer esquina — em um tropeço sem sentido, um ocaso que não anuncia sua chegada. Depois vieram os grandes filósofos — Sócrates, Platão, Epicuro, Sêneca, Epicteto — refletindo sobre a sabedoria, a velhice e a possibilidade de vivermos melhor diante da finitude inevitável.
Desde os gregos, muitas foram as formas de pensar esses enigmas. A finitude sempre esteve presente, como um fantasma a nos assombrar cotidianamente. É claro que não nos entregamos a isso o tempo todo — seria insuportável. Por isso, dirigimos nosso carro, bebemos uma cerveja, conversamos com amigos, assistimos a um jogo de futebol e, para aqueles que têm sorte na contingência dos encontros, construímos um amor — talvez o sentimento mais próximo da infinitude, seja ela biológica, pela reprodução, ou afetiva, pelo movimento de um sentimento que cresce à medida que é compartilhado.
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Ao mesmo tempo, é insuportável a ideia de jamais pensar nisso. Conviver com pessoas que não sentem, nem por um instante, na carne, esses dilemas, é perigoso. O sofrimento constante pode ser masoquismo; mas a ausência total de angústia revela, em certa medida, uma frieza diante da vida que beira a perversão. Sentimo-nos culpados, angustiados e sofredores em muitas situações — e isso é parte essencial da condição humana. Nunca sentir isso denuncia uma estrutura subjetiva incapaz de se preocupar consigo e com o outro. Trata-se de uma personalidade perigosa: aquela que atropela a própria vida ao anestesiar os afetos, seja com remédios, vitrines ou harmonizações faciais.
Parece que a nova organização das coisas nos fazer esquecer justamente daquilo que nos faz humanos. Preocupados com o novo lançamento do smartphone, a promoção de quinquilharias nos shoppings, a música repetitiva construída como um barulho auditivo de 30 segundos, o carro veloz, elétrico e esportivo são apenas exemplos de como as mesquinharias ocuparam o espaço total da existência, tentando apequenar uma vida que já é curta.
Na contemporaneidade, vivemos como se tivéssemos esquecido dessas grandes questões. Nossa vida é invadida pelo imperativo do consumo, que tenta tamponar toda e qualquer angústia — um esforço para silenciar o cambaleante e claudicante desejo que, paradoxalmente, é o que nos mantém de pé neste planeta perdido, flutuando na infinitude do nada. Talvez a lei do desejo — que só existe na base da ausência, pois nos impulsiona a buscar o que ainda não temos, sem a promessa de necessariamente encontrar — seja o que realmente nos sustenta em pé, oferecendo-nos uma certa elegância existencial, mais fundamental do que a própria lei da gravidade. Pois, enquanto esta mantém ereto o corpo, o desejo sustenta a estrutura que dá sentido à existência.
É por isso que a filosofia nunca foi tão necessária quanto agora. Não a filosofia acadêmica, hermética e inacessível, aprisionada na torre de marfim das universidades, mas uma filosofia do corpo, do desejo e da experiência — universal e particular ao mesmo tempo —, que se faz no cotidiano de cada ser humano, entre seus dilemas mais simples e, paradoxalmente, mais essenciais.
Nietzsche é, acima de tudo, um filósofo da vontade — não de uma vontade abstrata, mas de uma força vital que pulsa no corpo, afirmando a existência mesmo diante do caos e da incerteza. Em sua filosofia, o corpo não é um obstáculo à razão, mas a expressão mais autêntica da potência de viver: é nele que se manifesta a “vontade de potência”, esse impulso criador que transforma o sofrimento em força, a limitação em possibilidade. Ele convida o homem a mergulhar na experiência concreta do existir, a afirmar o devir e a inconstância da vida com o mesmo vigor com que um artista afirma sua obra. Assim, o corpo, diante do risco, torna-se o palco onde a vontade se realiza e onde o espírito aprende a dançar com o abismo — não fugindo dele, mas fazendo dele o compasso de sua própria criação.
A humilhação existencial se resume ao “segredo da juventude” sendo vendido em frascos, seringas e filtros de rede social. Afinal, juventude não tem nada a ver com a pele esticada ou a simetria do rosto, mas com a chama que ainda ousa queimar por dentro. O corpo, em uma leitura nietzschiana, não é um objeto de culto estético, mas um campo de forças, um redemoinho de vontades que se afirmam contra a decadência e o tédio. O sangue que corre nas veias é mais jovem do que qualquer rosto “harmonizado”, porque carrega o impulso de viver, de criar, de rir — sobretudo, de rir do absurdo. O verdadeiro elixir da juventude, diria Nietzsche, não está no soro da beleza, mas no riso de quem sabe que tudo passa e, mesmo assim, escolhe dançar.
O segredo da juventude, amplamente vendido pela indústria do culto ao corpo — nas academias que agora se envidraçam para expor o ser humano como o produto mais barato do capitalismo tardio, exibido em vitrines pelas ruas da cidade —, não está nas saídas estéticas, mas na nossa capacidade de correr riscos e, com isso, manter um corpo vivo e desejante.
O risco estimula nossos processos de rejuvenescimento: as mitocôndrias se multiplicam quando somos expostos ao esforço; a neuroplasticidade se expande quando enfrentamos o novo; a regeneração celular se intensifica quando o organismo é provocado a reagir. É como se o corpo, desafiado pela vida, respondesse afirmando-a: quanto mais o colocamos à prova, mais ele se reafirma em sua potência. A previsibilidade sedentária e a padronização estética, ao contrário, produzem a anestesia do conforto — e é aí que envelhecemos da pior forma possível: entre plásticos, trecos e objetos que tentam desvitalizar o próprio sujeito. O corpo quer risco, quer movimento, quer o desconforto fértil que o obriga a lembrar que ele vive.
A juventude é um estado de espírito trágico, não estético — é a ousadia de afirmar a vida em toda a sua imperfeição, a coragem de lançar-se ao abismo sem garantias, sem a promessa de salvação ou sucesso. Correr riscos, para Nietzsche, é o gesto mais vital de todos, pois é nesse enfrentamento do incerto que o homem reencontra sua potência criadora. A juventude, nesse sentido, não é uma fase biológica, mas um modo de ser que se reinventa diante do caos, que não teme a queda, porque compreende que só quem cai pode aprender a dançar sobre o próprio desequilíbrio.
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Enquanto o capitalismo tardio tenta nos vender juventude como mercadoria, a filosofia nos propõe uma rebeldia mais profunda: manter o corpo vivo não pelo culto à forma, mas pela vontade que pulsa, que transpira, que insiste em criar sentido onde nada está dado — a juventude como força que desafia o consumo, a apatia e o medo, e transforma o viver na arte de correr riscos.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
