Renato de Faria
Renato De Faria
Filósofo. Doutor em educação e mestre em Ética. Professor.
FILOSOFIA EXPLICADINHA

Trabalhar o necessário

Naturalizamos uma vida após o trabalho, em vez de uma vida além do trabalho — e isso faz toda a diferença

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Estamos acostumados a produzir excedentes. Não vejo problema algum em trocar esse conceito pela ideia de “desnecessário”. Afinal, nosso modo de produção se consolida justamente a partir desse tipo de criação. É preciso que uma grande massa populacional produza além do necessário, justamente porque outra parte vive dessa produção sem contribuir com ela. É nesse sentido que nos desvencilhamos da tarefa de produzir apenas o essencial.

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Acreditamos, ao longo da história, que precisamos sempre de “mais alguma coisa”. Porém, esse “a mais” nunca fica conosco. Até aqui, nenhuma novidade: o materialismo histórico já fez ciência disso e nos entregou, de bandeja, uma explicação organizada desse sistema econômico.

E o que seria do Modo de Produção Capitalista se eles os excedentes não existissem? Contudo, o que o materialismo histórico não pôde analisar — até porque não fazia parte daquela sociedade — foi a consolidação do excesso, que agora não se relaciona apenas a produtos e bens materiais, mas à própria lógica que fundamenta uma ideologia. Estamos passando de uma produção excessiva para um excesso de produtividade.

O trabalho se transformou, como previa Max Weber, em uma espécie de caminho de salvação proposto por uma divindade que nos cobra sempre um sacrifício maior. Não é mais a relação entre Abraão e Isaac. Agora, no capitalismo tardio, é a relação entre o sujeito e a própria imagem de sucesso que ele mesmo ajudou a construir — e da qual não pode mais se libertar. O altar, que já não está no alto de uma montanha, se sacraliza nas metas de produtividade e nas telas luminosas dos dispositivos que nos vigiam e nos convocam o tempo todo. O sacrifício, antes simbólico, tornou-se cotidiano: entregamos tempo, saúde e afeto em troca de uma promessa de sentido que nunca se cumpre.

A tecnologia apenas sofisticou o velho cronômetro de Taylor. A esteira fordista, que antes ditava o ritmo dos corpos, deu lugar a sistemas de gestão que monitoram até o piscar dos olhos. O toyotismo trouxe a automação e o ideal do “aprimoramento contínuo”, onde o erro deixou de ser humano para se tornar inadmissível. Agora, chegamos ao algoritmo — a forma mais refinada de desumanização do trabalho. Ele não apenas organiza tarefas: ele define metas, avalia desempenhos e distribui recompensas, sem rosto, sem pausa e sem ética.

Plataformas conseguem colocar milhões de pessoas para trabalhar simultaneamente em diferentes partes do mundo, sem jamais contratá-las. Cada motorista, entregador ou freelancer é um ponto de dados dentro de uma planilha que decide quem é produtivo o bastante para continuar existindo no sistema, o relógio que controlava o tempo agora cabe no bolso, travestido de oportunidade.

Naturalizamos uma vida após o trabalho, em vez de uma vida além do trabalho — e isso faz toda a diferença. No primeiro caso, vivemos pouco porque trabalhamos muito; no segundo, trabalhamos o suficiente porque é a vida que excede em nós. Como disse Gil, na belíssima canção Oriente: “Se oriente, rapaz, pela constatação de que a aranha vive do que tece.”

É nesse sentido que os coaches da Revolução Treconológica - aquela que nos encheu de trecos no braço, no ouvido e nos olhos como forma de aprisionamento voluntário a uma realidade virtual - aderiram ao Estoicismo, em vez do Epicurismo. A filosofia agradece.

O estoicismo, reinterpretado em versão corporate, serve bem à lógica do desempenho, na medida em que vende resiliência em lugar de questionar o sistema que exige tanta resistência. O sofrimento é embalado como oportunidade de crescimento, e a apatia, como sinal de maturidade emocional. Enquanto isso, o epicurismo — que poderia lembrar a importância do prazer simples, da amizade e do ócio é descartado como fraqueza. No fundo, o novo estoico não busca a liberdade interior, mas a manutenção funcional de uma engrenagem que precisa de sujeitos calmos, produtivos e silenciosamente conformados.

Trabalhar o necessário é diferente de trabalhar para o necessário. O necessário mantém uma relação com a construção do que é fundamental — uma arte que persegue a curadoria do essencial, não apenas para a sobrevivência material, mas também para nos posicionar diante daquilo que desejamos ser. Já trabalhar para o necessário é teologia de planilha. Na primeira forma, há medida, pausa, alento e até felicidade; na segunda, o sujeito se converte em um operário do infinito, servo da produtividade do excesso. O verbo “trabalhar” torna-se transitivo compulsório: trabalha-se para o lucro, para o sucesso, para não parecer inútil. Eis o milagre moderno: transformar o suor em capital simbólico e chamar de motivação a virtude de se esgotar nas coisas.

Trabalhar o necessário é um gesto de intimidade consigo mesmo — um exercício de escuta. É trabalhar a própria essência, com tempo, intervalos e alguma ternura pelo que se faz. Nesse modo, o trabalho não é apenas meio, mas também modo de existir: uma forma de se construir enquanto se cria. Já trabalhar para o necessário é submeter-se à lógica do dever sem subjetividade, produzir o que é “necessário” não para a vida, mas para o sistema que dela se alimenta. É fabricar aquilo que nos consome, chamar de necessidade aquilo que sustenta a máquina, e confundir o movimento com o sentido. No primeiro caso, há criação; no segundo, apenas manutenção.

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O verdadeiro desafio do nosso tempo é reaprender a fazer menos — e, nesse menos, voltar a caber dentro da própria vida. Desligar o modo de produção que deixamos rodando dentro da cabeça, mesmo quando o expediente termina. Reencontrar o gesto simples, o intervalo sem propósito e o erro sem punição. O trabalho pode até continuar sendo parte de nós, mas não pode continuar sendo o lugar onde deixamos o que temos de mais vivo. Porque, no fim, não é o excesso que nos falta é o espaço. E é nele que, silenciosamente, a existência tenta respirar.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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