Manifesto por uma escrita inútil: a dignidade de estar de saco cheio
Vivemos uma espécie de bulimia informacional sustentada por colunistas e podcasts, sentinelas da conjuntura
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Não é tão fácil escrever sem compromisso. Exige a liberdade digna de um pardal caramelo, desses que vivem soltos, de asas abertas ao momento presente, sem temer nenhum tipo de aprisionamento. Talvez seja por isso que o deleite literário, o palavroar das frases, está cada vez mais difícil. E existem momentos em que desejamos nos satisfazer com o nada, mergulhar no todo de coisa alguma e firmar matrimônio com o aleatório da existência humana.
O utilitarismo totalitário tem empobrecido nossa vida literária. E esse talvez seja o mais difícil de combater, pois nos chega travestido de informação, de conteúdo, de análise de conjuntura. Em cada coluna, a seriedade de um texto que tenta, dos horrores da guerra à mais nova discussão sobre os efeitos psíquicos da dieta, oferecer a sisuda palavra final sobre o juízo perfeito para a resolução dos problemas humanos.
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Estamos todos intoxicados, não por veneno químico, mas por vozes embaladas em promessas de clareza, compreensão e autoridade. De tanto podcast, estamos à beira de um saturcídio, enfastiados, transformando-nos apenas em receptores passivos de análises prontas, piadas calculadas e opiniões trituradas até o pó. Cada episódio é um gole amargo de certeza fabricada e, ainda assim, voltamos, compulsivos, como se a próxima voz pudesse finalmente nos livrar do tédio de pensar por conta própria.
Vivemos uma espécie de bulimia informacional, sustentada por colunistas — sentinelas da conjuntura — que nos brindam diariamente com a verdade última, sempre temperada de gravidade e senso de urgência. É uma liturgia do juízo perfeito: do aeroporto à economia, do muro de fronteira à última crise ética, tudo sob o olhar de quem se autoproclama intérprete da razão. O leitor é convidado a engolir toda essa torrente de informações com a sensação de que, se não assimilar, estará moral e intelectualmente falido. A humanidade, nesse esforço de se atualizar, esvai-se em boletins diários, podcasts compulsivos e na sensação angustiante de nunca saber o suficiente.
Lembremo-nos: as palavras nos convidam a virá-las do avesso e buscar um dessentido que nos conduza a sorver, lentamente, o balbucio dos textos inúteis. Escrever sem compromisso é, acima de tudo, um gesto de cuidado com a própria experiência humana. É permitir-se o luxo de não explicar tudo, de não concluir, de não ensinar nada. É uma prática de atenção às sutilezas da vida, ao rastro fugidio de uma emoção, ao lampejo de um pensamento que surge sem aviso. Ao se dedicar a essa forma de escrita, o autor se reconcilia com a incerteza, abraça a impermanência e toca aquilo que a utilidade imediata jamais alcançará: a eternidade suspensa no instante.
É preciso sentir a libertação político-literária que nos é dada pela autêntica experiência de estar de saco cheio — que deveria ser um novo diagnóstico, não reconhecido pela OMS —, um estágio avançado de lucidez em que o indivíduo reconhece o ridículo da engrenagem e decide, sabiamente, não girar junto.
Então, o remédio para a salvação literária daqueles que buscam apenas beber um texto gelado na tarde de uma terça-feira talvez seja imaginar a despretensão de um encontro em volta de uma mesa de bar, na qual Guimarães Rosa joga truco na companhia de Lampião, Riobaldo e Oscar Niemeyer, ouvindo Refazenda na voz de Gil, enquanto esperam Hilda Hilst, Machado de Assis e Manoel de Barros terminarem o tira-gosto e trazerem a cerveja. E nesse gesto despretensioso de imaginar, talvez nos relacionemos melhor com o mundo. Não para compreendê-lo, mas para suportá-lo com alguma ternura.
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