
O professor só quer dar aula
Quem nunca entrou em uma sala de aula na condição de professor não compreende que uma aula nunca é "só"
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O problema do professor é que ele só quer dar aula. Escutei essa frase há muito tempo. Mal sabia que ela não demonstrava apenas um profundo desconhecimento da prática docente, mas revelava também a visão distorcida de que o conteúdo do trabalho em sala de aula era um empecilho no relacionamento tóxico que se consolidaria adiante: o casamento entre a pedagogia e a administração.
Dar aulas começava a ser visto como um “problema”, e não mais como uma solução para o processo civilizatório. A questão era bem mais grave do que eu imaginava. A transmissão do saber — prática comum a qualquer licenciatura, e tão antiga quanto a própria filosofia — começava a ser considerada um entrave. Trocar professor por “mediador”, conteúdo por “habilidades”, prova por “autoavaliação” eram as consequências apontadas pelo marketing pedagógico.
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Quem nunca entrou em uma sala de aula na condição de professor — ou só o fez com o intuito de destituí-lo de seu lugar — não considerou (ou desconsiderou de forma bastante conveniente) que uma aula nunca é “só”. Ao contrário, o conhecimento compartilhado em um ambiente físico de aprendizagem — com destaque para o termo físico, esse corpo presente que ainda não pode ser replicado por avatares de IA com voz de GPS — acontece sempre entre as pessoas. Há uma corrente invisível de afetos, hesitações e curiosidades que conecta os presentes. Com manifestações distintas, existe algo que os coloca em um mesmo lugar: o desejo. De um lado, o desejo de ensinar; do outro, o desejo de aprender. Sem isso, a educação deixa de ser uma prática entre desejos humanos e se torna algo insosso, como um tutorial de como ferver água. Muita falação, pouco conteúdo, e um calor que só se sente pela tela.
Ensinar por meio de abstrações — gesto essencialmente humano — requer outras habilidades que não cabem nos relatórios de produtividade. A transmissão não é apenas do saber enciclopédico, mas de algo simbólico que coloca o professor no lugar de um “sujeito do suposto saber”. Com isso, o aluno direciona ao mestre suas questões, inquietações e dificuldades. Sem esse endereçamento, o conhecimento se torna inócuo, como uma biblioteca abandonada em uma cidade sem leitores.
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Dizer que o professor “só quer dar aula” deveria ser visto como uma virtude, não como uma limitação. Afinal, ninguém diz que os bancos só querem lucrar, que o Estado só quer taxar ou que as empresas de tecnologia só querem manipular como se isso fosse um problema. Na verdade, essas entidades estão cumprindo suas naturezas. O mesmo deveria valer para o mestre: ele só deseja exercer, com dignidade, a sua função social. Mas, para os técnicos da impotência educacional, dar aula é hoje uma espécie de comportamento inadequado, quase uma recaída didática — como se Platão tivesse faltado ao treinamento sobre metodologias ativas.
Ao contrário do que pensam as correntes inovadoras da pirotecnia pedagógica, retirar a nobreza da aula é um gesto excludente. Primeiro, exclui o professor e sua formação. Afinal, se o ensino se resume a desenvolver “habilidades e competências”, o conteúdo torna-se apenas um acessório descartável — uma espécie de papel de presente pedagógico. Depois, exclui o próprio estudante, a quem se nega a noção de que ainda há algo que ele não sabe — e que tudo bem não saber ainda. A escola, nessa lógica, deixa de ser espaço de construção e se torna um espaço de simulação, onde todo mundo “aprende” sempre, desde que ninguém pergunte exatamente o que aprendeu.
Com a “nova pedagogia da inovação disruptiva das práticas inovadoras”, o tempo docente é ocupado com tarefas alheias ao ensino. Ele está amarrado. Não consegue planejar, nem acompanhar com cuidado os estudantes que mais precisam. Não consegue ser presença viva para quem está à margem, pois está ocupado preenchendo, respondendo e atualizando tudo, menos o aprendizado. O tempo do saber foi engolido pelo tempo do fazer e pelo tempo do preencher — atividades tão automáticas que, ironicamente, essas sim poderiam ser feitas por qualquer inteligência artificial. Mas isso, é claro, colocaria em risco a essência dos burocratas criadores de soluções pedagógicas. Para se protegerem, tentam substituir o professor — não por competência, mas por conveniência.
Desconhece o espaço físico da aprendizagem quem pensa que uma aula se resume à transmissão de conteúdo. O professor é curador, intérprete e artesão. A construção de uma avaliação justa, a escolha de recursos eficazes, a seleção cirúrgica do exemplo cotidiano e a habilidade de transformar tudo isso em conhecimento são as chaves de um castelo invisível que todo docente, como um velho mestre de ofício, fabrica com esmero e entrega, gratuitamente, a seus aprendizes. A tradução das complexidades do mundo na simplicidade das palavras é o gesto ético do educador.
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Hannah Arendt, em seu célebre ensaio A crise na educação, já apontava o perigo de retirar da escola a responsabilidade de apresentar o mundo às novas gerações. Para ela, o professor deve ser representante do mundo adulto que se responsabiliza por essa sociedade, oferecendo-a, em conhecimento, ao jovem. Quando a escola abdica de ensinar em nome de uma pedagogia do consenso, do afeto forçado ou da neutralidade covarde, ela abandona seu papel civilizatório. Em vez de formar sujeitos aptos a pensar, forma consumidores de metodologias e replicadores de slogans. A crise, então, não está no professor que ainda quer dar aula — mas em uma sociedade que já não valoriza o que não pode ser quantificado em gráficos de desempenho.
A aula, esse espaço aparentemente simples onde alguém ousa dizer “vamos pensar juntos”, tornou-se o último reduto da resistência contra a lógica do desempenho, do imediatismo e do utilitarismo educacional. Quando um professor entra em sala e se dispõe a ensinar, ele está, ainda que sem perceber, mantendo viva a centelha do mundo comum. Talvez seja por isso que o capitalismo tardio, com sua vocação individualista e neoliberal, deseja silenciá-lo. Porque dar aula, hoje, é um ato ético. E, em tempos de barbárie disfarçada de inovação, ensinar com profundidade é, ironicamente, um gesto revolucionário.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.