Renato de Faria
Renato De Faria
Filósofo. Doutor em educação e mestre em Ética. Professor.
FILOSOFIA EXPLICADINHA

O professor só quer dar aula

Quem nunca entrou em uma sala de aula na condição de professor não compreende que uma aula nunca é "só"

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O problema do professor é que ele só quer dar aula. Escutei essa frase há muito tempo. Mal sabia que ela não demonstrava apenas um profundo desconhecimento da prática docente, mas revelava também a visão distorcida de que o conteúdo do trabalho em sala de aula era um empecilho no relacionamento tóxico que se consolidaria adiante: o casamento entre a pedagogia e a administração.

Dar aulas começava a ser visto como um “problema”, e não mais como uma solução para o processo civilizatório. A questão era bem mais grave do que eu imaginava. A transmissão do saber — prática comum a qualquer licenciatura, e tão antiga quanto a própria filosofia — começava a ser considerada um entrave. Trocar professor por “mediador”, conteúdo por “habilidades”, prova por “autoavaliação” eram as consequências apontadas pelo marketing pedagógico.

Quem nunca entrou em uma sala de aula na condição de professor — ou só o fez com o intuito de destituí-lo de seu lugar — não considerou (ou desconsiderou de forma bastante conveniente) que uma aula nunca é “só”. Ao contrário, o conhecimento compartilhado em um ambiente físico de aprendizagem — com destaque para o termo físico, esse corpo presente que ainda não pode ser replicado por avatares de IA com voz de GPS — acontece sempre entre as pessoas. Há uma corrente invisível de afetos, hesitações e curiosidades que conecta os presentes. Com manifestações distintas, existe algo que os coloca em um mesmo lugar: o desejo. De um lado, o desejo de ensinar; do outro, o desejo de aprender. Sem isso, a educação deixa de ser uma prática entre desejos humanos e se torna algo insosso, como um tutorial de como ferver água. Muita falação, pouco conteúdo, e um calor que só se sente pela tela.

Ensinar por meio de abstrações — gesto essencialmente humano — requer outras habilidades que não cabem nos relatórios de produtividade. A transmissão não é apenas do saber enciclopédico, mas de algo simbólico que coloca o professor no lugar de um “sujeito do suposto saber”. Com isso, o aluno direciona ao mestre suas questões, inquietações e dificuldades. Sem esse endereçamento, o conhecimento se torna inócuo, como uma biblioteca abandonada em uma cidade sem leitores.

Dizer que o professor “só quer dar aula” deveria ser visto como uma virtude, não como uma limitação. Afinal, ninguém diz que os bancos só querem lucrar, que o Estado só quer taxar ou que as empresas de tecnologia só querem manipular como se isso fosse um problema. Na verdade, essas entidades estão cumprindo suas naturezas. O mesmo deveria valer para o mestre: ele só deseja exercer, com dignidade, a sua função social. Mas, para os técnicos da impotência educacional, dar aula é hoje uma espécie de comportamento inadequado, quase uma recaída didática — como se Platão tivesse faltado ao treinamento sobre metodologias ativas.

Ao contrário do que pensam as correntes inovadoras da pirotecnia pedagógica, retirar a nobreza da aula é um gesto excludente. Primeiro, exclui o professor e sua formação. Afinal, se o ensino se resume a desenvolver “habilidades e competências”, o conteúdo torna-se apenas um acessório descartável — uma espécie de papel de presente pedagógico. Depois, exclui o próprio estudante, a quem se nega a noção de que ainda há algo que ele não sabe — e que tudo bem não saber ainda. A escola, nessa lógica, deixa de ser espaço de construção e se torna um espaço de simulação, onde todo mundo “aprende” sempre, desde que ninguém pergunte exatamente o que aprendeu.

Com a “nova pedagogia da inovação disruptiva das práticas inovadoras”, o tempo docente é ocupado com tarefas alheias ao ensino. Ele está amarrado. Não consegue planejar, nem acompanhar com cuidado os estudantes que mais precisam. Não consegue ser presença viva para quem está à margem, pois está ocupado preenchendo, respondendo e atualizando tudo, menos o aprendizado. O tempo do saber foi engolido pelo tempo do fazer e pelo tempo do preencher — atividades tão automáticas que, ironicamente, essas sim poderiam ser feitas por qualquer inteligência artificial. Mas isso, é claro, colocaria em risco a essência dos burocratas criadores de soluções pedagógicas. Para se protegerem, tentam substituir o professor — não por competência, mas por conveniência.

Desconhece o espaço físico da aprendizagem quem pensa que uma aula se resume à transmissão de conteúdo. O professor é curador, intérprete e artesão. A construção de uma avaliação justa, a escolha de recursos eficazes, a seleção cirúrgica do exemplo cotidiano e a habilidade de transformar tudo isso em conhecimento são as chaves de um castelo invisível que todo docente, como um velho mestre de ofício, fabrica com esmero e entrega, gratuitamente, a seus aprendizes. A tradução das complexidades do mundo na simplicidade das palavras é o gesto ético do educador.

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Hannah Arendt, em seu célebre ensaio A crise na educação, já apontava o perigo de retirar da escola a responsabilidade de apresentar o mundo às novas gerações. Para ela, o professor deve ser representante do mundo adulto que se responsabiliza por essa sociedade, oferecendo-a, em conhecimento, ao jovem. Quando a escola abdica de ensinar em nome de uma pedagogia do consenso, do afeto forçado ou da neutralidade covarde, ela abandona seu papel civilizatório. Em vez de formar sujeitos aptos a pensar, forma consumidores de metodologias e replicadores de slogans. A crise, então, não está no professor que ainda quer dar aula — mas em uma sociedade que já não valoriza o que não pode ser quantificado em gráficos de desempenho.

A aula, esse espaço aparentemente simples onde alguém ousa dizer “vamos pensar juntos”, tornou-se o último reduto da resistência contra a lógica do desempenho, do imediatismo e do utilitarismo educacional. Quando um professor entra em sala e se dispõe a ensinar, ele está, ainda que sem perceber, mantendo viva a centelha do mundo comum. Talvez seja por isso que o capitalismo tardio, com sua vocação individualista e neoliberal, deseja silenciá-lo. Porque dar aula, hoje, é um ato ético. E, em tempos de barbárie disfarçada de inovação, ensinar com profundidade é, ironicamente, um gesto revolucionário.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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