
O racismo no PT opera pelo silenciamento
Para quem observa minimamente a política partidária, não é novidade: o PT, por muitos anos, não estimulou nem apoiou mulheres negras a se candidatarem
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Hoje, quero falar sobre as mulheres negras na política de Minas Gerais. E falo do lugar que me atravessa: sou belorizontina, preta, militante do movimento de mulheres negras, com 41 anos de idade e uma história que me faz votar com o corpo inteiro.
Então vamos lá. Era 13 de agosto de 1983 quando Lélia Gonzalez escreveu, nas páginas da Folha de S. Paulo, um artigo corajoso. Ali, ela denunciava o silêncio ensurdecedor do PT em seu programa de TV, exibido em rede nacional, que simplesmente ignorava a questão racial. Dez temas foram tratados — nenhum deles era o racismo. Lélia chamou o que viu de “racismo por omissão”, uma das faces mais perversas da ideologia do branqueamento. Quarenta anos depois, eu, uma mulher preta na plateia dos comícios petistas para eleger Lula à presidência em Belo Horizonte, assistia ao mesmo filme: apenas vozes brancas ao microfone. E, quando uma mulher negra aparecia, era figurante — no fundo do palco, quase fora de foco. Dava a sensação de que o tempo passou, mas a estrutura permaneceu intacta.
Para quem observa minimamente a política partidária, não é novidade: o PT, por muitos anos, não estimulou nem apoiou mulheres negras a se candidatarem, seja em Belo Horizonte, em Minas ou no Congresso. Mas algo começou a rachar em 2016, quando Áurea Carolina pediu exoneração do cargo de Subsecretária Estadual de Políticas para as Mulheres — um posto no governo petista — para disputar as eleições pelo PSOL. Foi a vereadora mais votada da história da cidade até então.
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Depois, todas nós sentimos o abalo sísmico: a execução brutal de Marielle Franco. Um crime que escancarou a ausência de mulheres negras na política institucional e abriu os olhos de parte do eleitorado para a urgência de ocuparmos esse lugar. Nas eleições seguintes, vieram as respostas.
Pela primeira vez, mulheres negras foram eleitas em número significativo. Áurea deixou o mandato de vereadora para se tornar deputada federal — a primeira mulher negra mineira a conquistar esse posto. No Legislativo estadual, três mulheres negras ocuparam cadeiras de uma só vez: Ana Paula Siqueira, Andreia de Jesus e Leninha.
Saímos do nada para o quase. Entre 77 parlamentares na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, apenas três eram mulheres negras. Os outros 74 gabinetes permaneciam sob domínio branco.
Homens negros? Nenhum.
Em 2023, esse número cresceu. Todas as deputadas negras eleitas foram reeleitas, e Macaé Evaristo se somou à bancada. O PT ampliou sua presença negra feminina: Macaé chegou chegando, Leninha manteve seu mandato e Andreia de Jesus migrou do PSOL para o PT após uma ruptura política — uma cisão marcada, entre outras coisas, pela decisão de Áurea de não se candidatar novamente, apoiando, em vez disso, Célia Xakriabá, que se tornou a primeira deputada federal indígena por Minas Gerais.
Nesse novo ciclo, apareceu um nome que me trouxe até aqui: Dandara Tonantzin, jovem, preta, eleita deputada federal pelo PT.
Mas antes de falar dela, volto um pouco mais. É importante contar a trajetória de Macaé Evaristo — mulher negra, educadora, petista de longa data. Competente, estratégica, responsável por grandes mudanças quando esteve à frente da Secretaria de Educação de Belo Horizonte e de Minas Gerais.
Ainda assim, sua candidatura só foi admitida quando o PT percebeu que os votos das periferias e das comunidades negras estavam escorrendo para o PSOL. Sob pressão, o partido liberou uma verba mínima. Macaé fez campanha com pouco, foi muito votada, mas não se elegeu em 2018. Enquanto isso, Áurea e Andreia garantiam seus mandatos pelo PSOL. A exceção petista era Leninha de Montes Claros, eleita com mais de 51 mil votos.
Na eleição municipal de 2020, Macaé foi eleita vereadora, e dois anos depois, finalmente, conquistou a cadeira de deputada estadual. Mas o caminho foi pavimentado por uma geração anterior — mulheres negras que só conseguiram ocupar o legislativo quando encontraram abrigo em outro partido. Foi só então que o PT, com relutância, começou a ceder. E elas foram lá e mostraram a que vieram. Leninha reeleita. Andreia também. Macaé, enfim, deputada. Dandara, a primeira deputada federal preta de Minas Gerais, representando uma geração nova que ainda incomoda.
Aí chegamos ao PED — Processo de Eleição Direta — em julho de 2025. Um rito que, segundo o próprio PT, é símbolo da democracia interna do partido. Dandara tentou se candidatar à presidência estadual. Mas teve sua candidatura barrada. O partido alegou inadimplência com taxas. Ela afirmou ter quitado tudo. E ainda assim, não aceitaram. Foi ao banco, viu que o repasse havia atrasado por causa de protocolos de segurança. Judicializou o caso. Conseguiu uma liminar no dia 5 de julho, garantindo sua candidatura. O PT adiou a eleição, marcada para o dia 6, alegando falta de tempo para incluir seu nome nas cédulas. No dia 7, a liminar foi derrubada. A candidatura de Dandara voltou a ser silenciada.
Não quero discutir aqui a autonomia do partido. Mas não posso ignorar o que salta aos olhos: a suposta dívida de Dandara não foi um problema quando ela era cotada para disputar a prefeitura de Uberlândia — porque isso interessava ao partido. Mas candidatar-se à presidência estadual? Aí era demais. Uma ameaça. Uma desobediência.
No dia 9 de julho, Dandara apareceu em um vídeo ao lado de Edinho Silva, novo presidente nacional do PT, e do deputado Reginaldo Lopes. Ela não disse uma palavra. Edinho falou por ela:“Estou aqui com Reginaldo Lopes e com a deputada Dandara. Quero agradecer à Dandara, que está retirando o processo, para que possamos superar as dificuldades em Minas Gerais.” Depois disso, Dandara apenas convidou os filiados mineiros a votarem no próximo domingo.
Dandara tem 31 anos. Está em seu primeiro mandato. Recua. Mas eu pergunto: a quem interessa que ela não seja candidata? A quem interessa calar a força e o frescor de uma nova geração de mulheres negras? A quem interessa o adiamento de um futuro que já começou?
Parafraseando Lélia, com toda dor e lucidez:
O racismo no PT opera pelo silenciamento.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.