Eleonora Cruz Santos
Eleonora Cruz Santos
Economista, com mestrado em Demografia, doutorado em Administração e pós-doutorado em Economia, trabalha como consultora para organismos internacionais, atuando nas áreas sociais, de mercado de trabalho, migração e desenvolvimento humano; também leciona p
ELEONORA CRUZ SANTOS

Mobilidade social no Brasil: o que brindar?

Filhos que rompem a barreira da pobreza e da opressão social, da discriminação e da exclusão, brindam suas mães! Alguns, brindam também seus pais

Publicidade

Mais lidas

Entender a fragilização dos processos democráticos – incluindo a tendência mais conservadora e, em certos casos, mais violenta de tantos governos –, passa necessariamente pela ausência de escuta aos clamores das classes sociais menos favorecidas. O jovem consagrado escritor francês Édouard Louis constrói narrativa autobiográfica visceral, capaz de explicar como a imobilidade e a desigualdade sociais são o cerne da descrença na classe política.

Até o início deste século, as sociedades eram estigmatizadas – ou, para ser mais polida, classificadas por níveis de “desenvolvimento”, com métricas e indicadores que ranqueavam suas atividades econômicas e suas “ofertas de bem-estar social”. Com a difusão massiva das redes sociais e da capacidade inventiva de se promover narrativas (ou até mesmo falsas ou deslocadas no tempo), as fantasias da melhor qualidade de vida no “primeiro mundo” ainda seduzem. Falta-nos ler Louis.

Se o desafio da mobilidade social parecia restrita aos países “menos desenvolvidos”, basta voltar aos anos 1980, no interior da França, para conhecer a realidade daqueles que viviam em condições de pobreza. Não me refiro apenas aos imigrantes que, nas últimas décadas, buscam sobreviver em travessias mortais pelo Mediterrâneo, mas aos próprios franceses com baixa escolaridade. Vale lembrar que a França é, até hoje, a segunda maior economia da Europa.

Lançado em 2003, o Fome Zero, programa brasileiro de combate à fome, desdobrou-se no Bolsa Família, e ambos tornaram-se referências globais no combate à pobreza e à insegurança alimentar. Podemos dizer que avançamos muito nas últimas três décadas, mas ainda enfrentamos lacunas sociais abismais. O estudo mais recente – e talvez o mais completo – sobre mobilidade social no Brasil mostra nossa incapacidade de sair do lugar, ou melhor, de sairmos desse vergonhoso lugar.

O estudo da mobilidade social é fruto do artigo “Intergenerational Mobility in the Land of Inequality” que gerou a ferramenta intitulada Atlas da Mobilidade Social Brasil, produzida em parceria com o Instituto de Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS) e o Grupo de Avaliações de Políticas Públicas da Universidade Federal de Pernambuco. Os dados estão disponíveis para consulta, e o atlas é de fácil manuseio.

O estudo mostra “quão importantes são as características socioeconômicas e culturais de uma região – ou de todo o país – para determinar a trajetória de vida de seus descendentes”. Trocando em miúdos, analisa a capacidade de crianças e jovens romperem com a pobreza intergeracional de seus pais, considerando características demográficas (sexo e cor/raça), renda, escolaridade e recortes regionais.

Basicamente, o estudo e o Atlas da Mobilidade Social respondem à seguinte questão: “quais as chances de filhos de famílias entre os 50% mais pobres (em termos de renda familiar per capita), no Brasil, entre os anos de 2006 e 2010, alcançarem patamares superiores de renda entre os anos de 2015 e 2019?”. O estudo acompanha as famílias e seus filhos dentro de um intervalo de até 15 anos e mede a capacidade de superação econômica dos filhos.

Em linhas gerais, o estudo calcula a probabilidade de um(a) filho(a) das famílias entre os 50% mais pobres do País alcançar a metade “mais rica” da população, dividida em três faixas: os 50% com renda acima da mediana; os 25% mais ricos; e os 10% mais ricos. Os resultados indicam que 66% das pessoas que estão no grupo dos 50% mais pobres – equivalente a 33% da população total – não conseguem alcançar patamares de renda superior ao de suas famílias.

A probabilidade dos filhos dos 50% mais pobres alcançarem o patamar dos 50% mais “ricos” – ignoro, aqui, a discussão de desigualdade de renda retratada na assimetria da curva de renda e na elevada concentração de renda no Brasil – são de apenas 22,6% para a faixa dos 50% a 75% com maior renda; de somente 9% para alcançar o grupo entre 75% e 90% da renda; e de 1,8% para chegar aos 10% mais ricos.

O funil está secularmente posto! E tem lugar, cor e sexo. Dos 66% que não rompem a barreira dos 50% mais pobres, 85,8% são mulheres não brancas, ante 59% de homens não brancos; 66,3% têm pais com ensino fundamental incompleto, ou 62,6% com ensino médio incompleto e concentravam-se nas regiões Norte e Nordeste do País. As regiões Centro-Oeste e Sul apresentaram os melhores resultados do País e, em seguida, a Sudeste.

A conjunção de características demográficas só reforça o desafio secular da imobilidade. O economista francês Thomas Piketty, coordenador do projeto “World Inequality Lab”, juntamente com outros três pesquisadores, divulgou recentemente o primeiro estudo de grande abrangência (de 1.800 até 2.100) sobre o impacto das horas trabalhadas, remuneradas ou não, nos ganhos de produtividade, desigualdade e transformação estrutural das economias.

Os resultados da pesquisa são impressionantes: ao longo de pouco mais de dois séculos, em 49 países, as horas trabalhadas anualmente, remuneradas ou não, caíram 34% - de aproximadamente 3.200 horas anuais para 2.100, entre 1800 e 2025. O estudo associa essa queda abrupta aos avanços tecnológicos e sociais, mas deixa claro a persistência do peso de horas desproporcional sobre as mulheres, junto à baixa remuneração.

Voltando ao escritor Édouard Louis – agora em “Lutas e metamorfoses de uma mulher” –, temos a narrativa do filho que viveu a opressão da mãe por um pai violento e castrador. Já adulta, madura e dotada de inexplicável força interior, a mãe rompe o casamento e busca sua liberdade e seus desejos. Louis relata momentos em que propicia à sua mãe poder adentrar o universo da riqueza, do luxo, da moda e da cultura – inclusive promovendo um encontro com Catherine Deneuve.

Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia

Filhos que rompem a barreira da pobreza e da opressão social, da discriminação e da exclusão, brindam suas mães! Alguns, brindam também seus pais. Em todos os casos, devem brindar a si próprios pela mobilidade social fruto de esforço hercúleo capaz de transpor preconceitos e barreiras culturais e criar sentimentos de pertença. No Brasil, porém, ao menos 33% da população não tem o que brindar, em pleno século XXI.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

Tópicos relacionados:

economia literatura pernambuco

Parceiros Clube A

Clique aqui para finalizar a ativação.

Acesse sua conta

Se você já possui cadastro no Estado de Minas, informe e-mail/matrícula e senha. Se ainda não tem,

Informe seus dados para criar uma conta:

Digite seu e-mail da conta para enviarmos os passos para a recuperação de senha:

Faça a sua assinatura

Estado de Minas

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Aproveite o melhor do Estado de Minas: conteúdos exclusivos, colunistas renomados e muitos benefícios para você

Assine agora
overflay