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Eleonora Cruz Santos
Eleonora Cruz Santos
Economista, com mestrado em Demografia, doutorado em Administração e pós-doutorado em Economia, trabalha como consultora para organismos internacionais, atuando nas áreas sociais, de mercado de trabalho, migração e desenvolvimento humano; também leciona p
ECONOMÊS EM BOM PORTUGUÊS

Enem no país do analfabetismo funcional e da adicção tecnológica

A sociedade parece já saber "de cor e salteado" qual deve ser a cartilha do ensino de qualidade. Os governos parecem não querer aprender

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Em 1940, apenas 44% da população brasileira com 15 anos ou mais de idade era considerada alfabetizada. Passados 40 anos, o percentual de alfabetizados subiu para 74,5% e, em 2022, quase toda (93%) população de 15 anos ou mais (93%) era alfabetizada. No entanto, dados de fontes diversas convergem para a baixa qualidade da educação, como os dados do Sistema de Avaliação do Ensino Básico (Saeb), em 2023, e do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em 2024.

 

 

Nos idos de 1990, o País preocupava-se em erradicar o analfabetismo, garantindo que as pessoas fossem capazes de, ao menos, saber ler e escrever um simples bilhete. Atualmente, o desafio crescente é garantir o letramento, considerado como a capacidade de usar a leitura e a escrita em diferentes contextos. O Brasil ainda está no limbo ao garantir, predominantemente, a existência do analfabetismo funcional.


O analfabetismo funcional acomete aqueles que conseguem ler e escrever, mas não são capazes nem de interpretar o que leem, nem de colocar a leitura em prática. Em outras palavras, inclui a incapacidade de usar a leitura e a escrita de forma crítica e reflexiva, configurando-se como a coroação de uma educação de baixa qualidade.

 

 

É na esteira do analfabetismo funcional que o Brasil pode gerar o falso cumprimento da Meta 4.6 do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 4 – Educação de Qualidade – que garante que, “até 2030, todos os jovens estejam alfabetizados, tendo adquirido os conhecimentos básicos em leitura, escrita e matemática”.


É ainda na esteira das mudanças na grade curricular, mantidos e ainda permitidos os malabarismos das contadorias públicas – para fins de cumprimento das metas com (maus) gastos em educação –, que as crianças e jovens brasileiros, sobretudo os mais pobres, continuam excluídos da capacidade de práticas sociais de leitura e escrita. Dentro do incorrigível sistema educacional básico brasileiro, formam-se indivíduos incapazes de utilizar socialmente suas habilidades de leitura e escrita.

 


É do educador Paulo Freire a afirmativa de que “aprender a ler, a escrever, alfabetizar-se é, antes de mais nada, aprender a ler o mundo, compreender o seu contexto, não numa manipulação mecânica de palavras, mas em uma relação dinâmica que vincula linguagem e realidade.” A leitura transcende o ato de ler e abre a perspectiva da consciência do ser em seu contexto social, econômico e politico.


O mais trágico contraponto contemporâneo à consciência de pertencimento social, levantada por Freire, é a expressão “brain rot” – em tradução livre, “cérebro apodrecido” -, considerada a mais utilizada, em 2024, segundo o dicionário de Oxford. “Brain rot” é o reflexo da assimilação excessiva de conteúdos de baixa qualidade produzidos pelas redes sociais; é o reflexo da limpeza cerebral culminada no analfabetismo letrado capaz de atingir todas as classes sociais e faixas etárias.


O Brasil tem dado claros sinais de ter sido dragado pelos efeitos nefastos do excesso de horas em redes sociais, que considero como “adicção tecnológica contemporânea”, alimentada por perversos algoritmos capazes de inebriar e consumir horas do dia das pessoas em todas as faixas etárias. Os efeitos sobre a educação são perceptíveis em exames e pesquisas, tais como o Enem e as pesquisas “Retratos da Leitura” e “Opinião das Famílias”.

 


O Enem teve início em 1988, e seus dados tornaram-se longitudinalmente comparáveis a partir de 2009. Em um breve levantamento dos resultados de redação, dois pontos se destacam: primeiro, a queda expressiva, de cerca de 1 milhão, do número de inscritos que realizaram as provas a partir de 2020 – ano de início da pandemia que reforçou ainda mais a evasão de jovens do ensino médio na educação pública.


Em segundo, destaca-se a queda, desde 2013, no número de pessoas que conquistaram a nota máxima em redação. Naturalmente, não se pode desconsiderar as mudanças nos critérios de correção, ou no corpo técnico de avaliadores. Entretanto, o fato é que, entre 2013 e 2015, o número de redações com nota máxima foi, em média, de 278; em 2016, caiu para 77, enquanto 2024 apresentou o pior desempenho da série com apenas 12 notas máximas.


O aumento da evasão no ensino médio, sobretudo entre homens, que também experimentam piores resultados comparativamente às mulheres no Enem, somado ao crescimento do “brain rot” configura uma tempestade perfeita para a geração que enfrenta um mercado de trabalho com condições cada vez mais precárias, além de um ambiente econômico e político hostil e instável, tanto interna quanto externamente.


A série histórica da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, promovida pelo Instituto Pró-livro, em parceria com a Fundação Itaú, apresenta dados que corroboram com o vexatório desempenho do Enem: o percentual de pessoas que não leram nenhum livro ou parte de um livro aumentou de 47%, em 2007, para 53%, em 2024. Em síntese, mais da metade da população não leu nem parte de um livro em 2024, nos três meses que antecederam à pesquisa.

 


Para corroborar o cenário da adicção tecnológica, a pesquisa ainda indica que os efeitos de perda de leitores foram mais sentidos nas pessoas com poder aquisitivo mais elevado. Ao que tudo indica, “brain rot” tem afetado todos os estratos sociais, mas pode estar tendo efeito mais devastador nos mais elevados. A falta de ensino que retenha a atenção dos jovens atrelada à dificuldade de regulação das redes sociais têm sido um pesadelo para os gestores públicos.

 

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A pesquisa “Opinião das Famílias: percepções e contribuições para a educação municipal”, realizada entre julho e agosto últimos, só reforça a urgência da aplicação eficiente e eficaz dos recursos públicos na educação básica. Aumentar o número de escolas em tempo integral, com permanência mínima de 6 horas; melhorar a infraestrutura das escolas; e investir na alfabetização e dar melhores condições para os professores foram as maiores reivindicações trazidas pela pesquisa.


A sociedade parece já saber “de cor e salteado” qual deve ser a cartilha do ensino de qualidade. Os governos parecem não querer aprender a construir as trilhas do conhecimento que tiram a sociedade do analfabetismo funcional e do “brain rot”. É de suma importância que os prefeitos que tomaram posse tenham consciência de que a relação dinâmica entre linguagem e realidade dita as regras da qualidade de seus governos e de seus legados. Vão preferir seguir “colando e tomando bomba”?!

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