Só mesmo muita generosidade divina para trazer, em momento de tanta conturbação política, o filme 'Ainda estou aqui' para os cinemas brasileiros -  (crédito: Videofilmes/reprodução)

Só mesmo muita generosidade divina para trazer, em momento de tanta conturbação política, o filme 'Ainda estou aqui' para os cinemas brasileiros

crédito: Videofilmes/reprodução

Em uma semana que tinha tudo para exaltar a recepção, o pacto, os acordos e a visibilidade do elevado nível da gestão da atual política externa brasileira, o primeiro encontro do G-20 no Brasil poderia ter tido protagonismo muito maior não fosse a mancha deixada, mais uma vez, pela revelação das tentativas de um novo Golpe de Estado que carregava ações de envenenamento do atual presidente da república e de seu vice e de assassinato do presidente do Supremo Tribunal Federal.

 

 

Sempre rio por dentro quando ouço alguém dizer que “Deus é brasileiro”. Na semana passada, por fração de segundos, acreditei nesse ditado. Só mesmo muita generosidade divina para trazer, em momento de tanta conturbação política, o filme “Ainda estou aqui” para os cinemas brasileiros e relembrar, ou explicar para os que desconhecem, que ditadura é o pior regime politico que qualquer sociedade pode experimentar. O filme não poderia ter chegado em hora mais propícia.

 

Seguindo a máxima de Churchill, “a democracia é a pior forma de governo, exceto por todas as demais” e o belo filme de Walter Sales faz parte da memória viva do que isso significa para a sociedade brasileira. O plano de um novo golpe militar trazia pistas do desastre, seguido de tragédia, a que estaríamos expostos. Um misto de arrogância, prepotência e ignorância que, na prática, e, se bem-sucedido, certamente traria prejuízos dificilmente estimados para o País.

 

Vale lembrar que, entre as principais ações dos militares quando realizaram o Golpe Militar, em 1964, foi a censura que assolou o meio cultural e intelectual do país. Apreço à cultura é apreço à vida em suas raízes. A cultura diz muito do povo. É pela cultura que nos expressamos e que nos constituímos. Um país é reconhecido, antes de mais nada, por suas riquezas naturais e culturais. Portanto, censurar a cultura é abrir caminho para a morte de uma sociedade, ou seu adoecimento em alto grau.

 

A cultura sobrevive às intempéries econômicas e parece ser tomada pelo dom da ressurreição. É vida que não se acaba, é história que se reconta. Saber apreciar a cultura em suas raízes é reconhecer o ser humano em suas essências. E essa diversidade de mundos, em um único mundo, é a unicidade do ser humano em um universo de infinitas possibilidades e formas de expressão. Cultura é o infinito em universos particulares de expressão, ação, história, memória, vida e morte.

 

Adentrei-me no universo da cultura popular do Vale do Jequitinhonha, região situada ao nordeste do estado de Minas Gerais, na mesma semana em que o Presidente da República recebia, no Museu de Arte Moderna, na cidade do Rio de Janeiro, os chefes de Estado das Nações mais poderosas do mundo. Assisti à contradição que nos acompanha historicamente e me perguntei como sobreviver a tanta disparidade.

 

 

Somente a cultura, mesmo aquela que se perde por falta de zelo, é capaz de nos nutrir em golpes de sobrevivência que mantêm nossos mais íntimos sonhos e desejos. É pela cultura que nutrimos nossa liberdade interior; é pela educação e pela cultura que somos capazes de construir nossos pilares de vida e memória, de mantermos bombeado o sangue das ancestralidades em nossas veias, identificarmo-nos com nossas origens e termos apreço e apego à nossa história. O Vale é cultura!

 

Parede do Museu de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha (MG), com objetos de uso doméstico e frase pintada sobre uso de violência

Museu de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha (MG): 'O Vale é cultura!'

Eleonora Cruz/EM/DA Press
 

 

O Vale do Jequitinhonha carrega marcas indeléveis, destacando-se: (i) seus personagens mais característicos, como tropeiros, canoeiros, pescadores, artesãos, lavadeiras e romeiros; (ii) suas músicas de verso e viola, que encantam e se transformam em canções para as festas do Congado e da própria igreja católica, essas últimas pelas mãos do Frei Chico, holandês que dedicou mais de 40 anos de sua vida a valorizar e promover a cultura popular do Vale.

 

Frei Chico produziu grandes obras, dentre elas, o “Dicionário da Religiosidade Popular: Cultura e Religião no Brasil”, verdadeira relíquia da alma cristã e popular brasileira. Promoveu artesãos e outros artistas que ganharam projeção nacional e deixou marcado o senso de pertença e apreço às raízes, no povo do Vale, em especial nos cidadãos do município de Araçuaí que integram a região do Médio Jequitinhonha.

 

 

Foi nesse município que me deparei com o “Museu de Araçuaí”, um primor da cultura daquele município que tanto carrega da região na sua totalidade. No Museu de Araçuaí, pode-se conhecer mais a fundo a história marcada pela presença do Frei Chico naquele município e sua influência na perpetuidade da cultura regional. Na figura da idealizadora do museu, podemos conhecer o orgulho de ser uma cidadã de Araçuaí, assim como de tantas outras mulheres que lá vêm tecendo sua cultura.

 

No Carnaval de 2024, o bloco belo-horizontino “Pisa na Fulô, criado em 2015 e considerado o primeiro bloco carnavalesco de forró do país, teve como tema a cultura do Vale do Jequitinhonha – o tema foi intitulado “Jequi Xaxado”. Afirmo, sem hesitar, que o Pisa na Fulô fechou com chave de ouro o carnaval de 2024!

 

Além de prestar linda homenagem a Frei Chico e sua amiga e multiartista Lira Marquês, hoje reconhecida nacionalmente, o Pisa na Fulô também incluiu, em seu elenco de homenageados, os cantores e compositores Rubinho do Vale, Wilson Dias, Pereira da Viola, Carlos Farias e Saulo Laranjeira; o poeta Gonzaga Medeiros; o Coral das Lavadeiras do Vale; o grupo de artesãs e bordadeiras Mulheres do Jequitinhonha e o Festivale – Festival de Arte e de Cultura Popular.

 

Enquanto o carnaval do Pisa na Fulô retratou marcada e alegremente o Vale do Jequitinhonha, conhecer a região de perto ou mesmo por indicadores socioeconômicos dá a noção de quão penoso tem sido preservar sua cultura. Araçuaí, por exemplo, carrega traços de colonização marcada pela pobreza que perdura até hoje e é refletida nos índices de desenvolvimento humano e nos desafios do setor público local em restaurar e dar vida ao seu patrimônio histórico.

 

O município é cada vez mais procurado por investidores nacionais e internacionais que veem na riqueza do lítio, material em abundância na região, a mais normal forma de extração de riqueza que sempre marcou a região. Mas é desejado e esperado que a cultura empresarial pós-contemporânea, apegada às normas de governança (ESG) e igualdade de oportunidades (DEI), mude a realidade atual.

 

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Até o momento, a indescritível cultura do Vale do Jequitinhonha tem sido preservada pela força de seus artistas que, na insanidade de suas devoções e entregas, encontram na figura de seres iluminados como Frei Chico, nas benzedeiras centenárias, na idealizadora do Museu de Araçuaí e em outros anjos invisíveis ou visíveis a força para seguirem em golpes de sorte que sustentam sua cultura cujos alicerces simbolicamente ainda preservam pedaços de prédios históricos arruinados.